Episodio
10 : Consciência e Ferocidade
Voihuu
observava, sentada em cima de uma grande pedra, o Grande Vale que se
descortinava a sua frente. Era madrugada, noite estrelada, quase amanhecendo, e
uma densa neblina gelada cobria o Vale, como um manto de um mistério
impenetrável.A fera estava preocupada que os Giganoterios ainda não haviam
chegado ao Vale, e ela adorava caça-los, e sentia intensa fome.
Então
seus ouvidos sensíveis captaram um débil sinal de presença humana.
Seu
focinho também farejava cheiros tipicamente humanos.
“-Então é Isto! Malditos humanos!”
Ela
pensou consigo mesma, e voltou-se para o outro lado, aquele que dava para as
grandes planícies.
Ela
não costumava ir para lá, mas desta vez resolveu ir investigar o que estava
acontecido.
Quando
chegou ao sopé das montanhas, no estreito canal que levava ao Vale,viu o Exercito
humano indo embora ao longe,e ,amontoados numa pilha tão horrenda e grotesca
quanto gigantesca,milhares e milhares de carcaças de Giganoterios envoltos em
um lago de sangue já coagulado.Uma nuvem de insetos carniceiros já tomava conta daquelas paragens
de morte,mas isto não foi o que mais a aterrorizou: começou a ouvir lamentos e
mugidos de dezenas de bestas agonizantes, mortalmente feridas, mas ainda
vivas,,com marcas de perfurações de espadas ,ventres abertos, vísceras pulsando
fora do corpo,com pernas decepadas, e outras mutilações.Viu também filhotes
assim neste mesmo estado, clamando por suas mães.Um em especial chamou mais a
sua atenção, um filhote de poucos meses, que tinha sobrevivido ainda que muito
machucado,tentando mamar na mãe agonizante, a qual estava grávida, e cujo feto
ainda em formação estava exposto ao ar,e o pobre filhote não achava as tetas da
mãe, pois elas tinham sido arrancadas a golpe de espada, e mugindo de fome
intensa, o filhote desesperado viu a mãe dele morrer na sua frente.
Ele
então lamentou alto, cabeça para o céu, lágrimas caindo dos olhos,depois
deitou-se junto a cabeça ensangüentada da mãe, e dormiu seu sono de morte. Não
iria acordar nunca mais.
Voihuu
estava profundamente comovida, mas igualmente revoltada também.
Talvez
o mais revoltante e´que todo o poderio de sua forca muscular, de suas garras,
de seus dentes enormes,nada podiam contra as armas humanas.Se ela tentasse
alcançar o exercito, ela com certeza seria massacrada também.
Ela
então não suportou mais o cheiro mórbido da putrefação advinda daquele desastre
monumental, e saiu dali.
Rumou
para as planícies, onde achou que poderia encontrar alguma presa desavisada.O
que achou diante de si foi uma pequena menina deitada na relva.
“-Uma
criança, filhote de homem! O que estará fazendo aqui sozinha?”
Pensou
a fera consigo mesma.Pensou então se a criança estaria dormindo ou
morta.Farejou-a. Não havia cheiro de carne putrefata nela,mas o cheiro de suor
estava forte.Então a criança se mexeu, e agora o som da respiração dela ficou
plenamente audível.
-Ela
está viva !Disse Voihuu em voz alta.
Rikku
então acordou.Levantou-se e olhou para a fera que estava bem próxima a sua
frente.Não demonstrou medo, e a encarou com firmeza, fuzilando os olhos dela
com seu olhar obstinado.
A
fera foi pega de surpresa, e parecia encantada diante deste olhar tão
impressionante.Repentinamente, aquele ser monstruoso parecia paralisado,
aferrado nos grilhões daquele olhar tão autoritário e firme, e ele não
conseguia de maneira alguma libertar-se desta opressão.Passava-lhe por sua
mente como alguém assim tão pequena conseguia ter assim tanto poder.
Ainda
que inconscientemente o olhar de Voihuu foi baixando e baixando, e o corpo foi
se colocando numa posição de submissão, e ela estava de olhos rasos.Sentiu de
repente uma angústia tão grande dentro de si, tão profunda e delirante, um
vazio em sua alma tão absoluto,que pôs-se de pé novamente e soltou um uivo
cavernoso e horripilante, longo e agônico, uivo que logo se transformou em
choro convulso.
Quando
finalmente se refez, a menina estava distraída, numa autoconfiança que
impressionava.
-Ainda
tem dúvidas de que estou viva, fera falante?
-Quem é você? O que fazes aqui?
-Estou
aproveitando a minha vida, enquanto a tenho.Meu nome é Rikku.
-Disse
bem, enquanto esta viva, pois não ficará por muito tempo. Estou com fome e vou
devorá-la.
-Vai
mesmo?
Voihuu
colocou suas garras para fora e urrou feroz e trovejantemente.
-Isto
não me impressiona. Você não foi capaz de enfrentar sequer o olhar de uma
criança como eu...
-Não
me provoque ! Não me deixe libertar
minha ira! Não basta o meu instinto esmagador que me alucina, não basta o que
sua gente fez com os...
-Eu
vi. Fui testemunha, vi tudo acontecer, nunca mais vou esquecer. Mas não foi a
minha gente que fez aquilo.Eu não me reconheço neles.
A
pata da fera voou para cima do rosto de Rikku, mas as garras a atingiram só de
raspão, e fizeram cortes superficiais na bochecha direita da menina.
-Pode
me matar , se quiser, mas se o fizer, lembre-se que eu posso vingar as bestas
mortas, você não.
-Como
faria isto? Você é uma criança!
-Acreditarão
muito mais em uma criança do que numa fera, pois eles não irão querer matar a
mim, mas a você, matariam com prazer.
-De
que adianta o Homem vingar o que o próprio homem fez? Eu posso não conseguir
matar aquela horda de gente, mas posso matá-la e devorá-la facilmente!
Foi
então que um animal de porte generoso se aproximou bufando Era o Giganoterio
salvo por Rikku. Interpôs-se entre a menina e a fera, em posição de ataque.
Estava disposto a dar sua própria vida pela da menina.
Voihuu
colocou-se em posição de ataque também, e rugiu ameaçadoramente, expondo seus
longos e amedrontadores caninos a vista do ungulado gigante, que lhe dirigiu um
olhar raivoso.Espumava de fúria.
-Não
precisa, meu amigo. Eu posso tomar conta da fera sozinha.
E
Rikku dirigiu a fera o mesmo olhar inquisidor que sabia fazer tão bem, e o
resultado foi o esperado, ela acabou baixando os olhos e colocou-se em posição
de submissão.
Com
tapinhas carinhosos no focinho do Giganoterio, a menina despediu-se dele.O
poderoso ungulado pôs –se em marcha ,logo sumindo no horizonte.
-Então
ainda havia sobrado um! E porque ele tentou salvar a sua vida?
-Por
que eu salvei a vida dele, fera falante. Cavalguei-o e o impedi de cair na
armadilha dos homens.
-De
agora em diante tens meu respeito e confiança.Mas pare de me chamar de fera
falante. Meu nome e´Voihuu.
-O
sentimento é o mesmo, vindo de mim a você.Mas estás com fome, e vi agora há
pouco uma manada de Megarodentias
passando por aqui. A pista ainda deve estar fresca, e se você se apressar, você
as alcança.
-Mas
se você é amiga dos animais e os protege, porque esta denunciando aquelas
bestas para mim?
-Porque
você só caça na medida da sua fome, da sua necessidade, segue as regras
naturais, e os predadores sempre dão prefência a indivíduos velhos e doentes,
deixando os mais fortes e saudáveis florescerem.
-Mas
um dia também você ficara velha ou doente, e não ira querer que te matem.Mas
como o Homem é o único que cuida dos velhos e doentes, eles cuidarão de ti
nestas horas.Então, enquanto estiver apreciando tais cuidados,não pensará mais
desta forma.
-Não
contarei com isto, Voihuu.é,com certeza há sapiência nas regras naturais.E
os seres humanos as contradizem, e arcam com o ônus desta decisão, debilitando
sua própria sociedade para tal, mas sempre beneficiando a outros com isto.E´uma
falsa piedade, pois cuidam mas marginalizam os velhos e doentes ao mesmo
tempo.A verdadeira piedade é a Natural, e as vezes, por cruel que pareça, a
falta de piedade pode ser piedosa.Quando você mata, por exemplo, mata
instantaneamente, abreviando o sofrimento de suas presas.Aqueles homens que
mataram tanto assim torturaram os pobres
animais antes de mata-los, alongando-lhes o sofrimento angustiantemente.Bom,
agora vá, não deves mais passar fome.Um dia minha vida foi poupada,um dia sua
vida lhe será poupada em troca também.
As
garras de Voihuu se recolheram, e ela virou as costas para a menina, e
prosseguiu caminho, caminhando em direção do horizonte...
(Por Continuar)