terça-feira, 1 de outubro de 2019

Episódio 10- (Minissérie)- Eternidade


Episodio 10 : Consciência e Ferocidade


Voihuu observava, sentada em cima de uma grande pedra, o Grande Vale que se descortinava a sua frente. Era madrugada, noite estrelada, quase amanhecendo, e uma densa neblina gelada cobria o Vale, como um manto de um mistério impenetrável.A fera estava preocupada que os Giganoterios ainda não haviam chegado ao Vale, e ela adorava caça-los, e sentia intensa fome.
Então seus ouvidos sensíveis captaram um débil sinal de presença humana.
Seu focinho também farejava cheiros tipicamente humanos.
“-Então é Isto! Malditos humanos!”
Ela pensou consigo mesma, e voltou-se para o outro lado, aquele que dava para as grandes planícies.
Ela não costumava ir para lá, mas desta vez resolveu ir investigar o que estava acontecido.
Quando chegou ao sopé das montanhas, no estreito canal que levava ao Vale,viu o Exercito humano indo embora ao longe,e ,amontoados numa pilha tão horrenda e grotesca quanto gigantesca,milhares e milhares de carcaças de Giganoterios envoltos em um lago de sangue já coagulado.Uma nuvem de insetos  carniceiros já tomava conta daquelas paragens de morte,mas isto não foi o que mais a aterrorizou: começou a ouvir lamentos e mugidos de dezenas de bestas agonizantes, mortalmente feridas, mas ainda vivas,,com marcas de perfurações de espadas ,ventres abertos, vísceras pulsando fora do corpo,com pernas decepadas, e outras mutilações.Viu também filhotes assim neste mesmo estado, clamando por suas mães.Um em especial chamou mais a sua atenção, um filhote de poucos meses, que tinha sobrevivido ainda que muito machucado,tentando mamar na mãe agonizante, a qual estava grávida, e cujo feto ainda em formação estava exposto ao ar,e o pobre filhote não achava as tetas da mãe, pois elas tinham sido arrancadas a golpe de espada, e mugindo de fome intensa, o filhote desesperado viu a mãe dele morrer na sua frente.
Ele então lamentou alto, cabeça para o céu, lágrimas caindo dos olhos,depois deitou-se junto a cabeça ensangüentada da mãe, e dormiu seu sono de morte. Não iria acordar nunca mais.
Voihuu estava profundamente comovida, mas igualmente revoltada também.
Talvez o mais revoltante e´que todo o poderio de sua forca muscular, de suas garras, de seus dentes enormes,nada podiam contra as armas humanas.Se ela tentasse alcançar o exercito, ela com certeza seria massacrada também.
Ela então não suportou mais o cheiro mórbido da putrefação advinda daquele desastre monumental, e saiu dali.
Rumou para as planícies, onde achou que poderia encontrar alguma presa desavisada.O que achou diante de si foi uma pequena menina deitada na relva.
“-Uma criança, filhote de homem! O que estará fazendo aqui sozinha?”
Pensou a fera consigo mesma.Pensou então se a criança estaria dormindo ou morta.Farejou-a. Não havia cheiro de carne putrefata nela,mas o cheiro de suor estava forte.Então a criança se mexeu, e agora o som da respiração dela ficou plenamente audível.
-Ela está viva !Disse Voihuu em voz alta.
Rikku então acordou.Levantou-se e olhou para a fera que estava bem próxima a sua frente.Não demonstrou medo, e a encarou com firmeza, fuzilando os olhos dela com seu olhar obstinado. 
A fera foi pega de surpresa, e parecia encantada diante deste olhar tão impressionante.Repentinamente, aquele ser monstruoso parecia paralisado, aferrado nos grilhões daquele olhar tão autoritário e firme, e ele não conseguia de maneira alguma libertar-se desta opressão.Passava-lhe por sua mente como alguém assim tão pequena conseguia ter assim tanto poder.
Ainda que inconscientemente o olhar de Voihuu foi baixando e baixando, e o corpo foi se colocando numa posição de submissão, e ela estava de olhos rasos.Sentiu de repente uma angústia tão grande dentro de si, tão profunda e delirante, um vazio em sua alma tão absoluto,que pôs-se de pé novamente e soltou um uivo cavernoso e horripilante, longo e agônico, uivo que logo se transformou em choro convulso.
Quando finalmente se refez, a menina estava distraída, numa autoconfiança que impressionava.
-Ainda tem dúvidas de que estou viva, fera falante?
-Quem é você? O que fazes aqui?
-Estou aproveitando a minha vida, enquanto a tenho.Meu nome é Rikku.
-Disse bem, enquanto esta viva, pois não ficará por muito tempo. Estou com fome e vou devorá-la.
-Vai mesmo?
Voihuu colocou suas garras para fora e urrou feroz e trovejantemente.
-Isto não me impressiona. Você não foi capaz de enfrentar sequer o olhar de uma criança como eu...
-Não me provoque ! Não  me deixe libertar minha ira! Não basta o meu instinto esmagador que me alucina, não basta o que sua gente fez com os...
-Eu vi. Fui testemunha, vi tudo acontecer, nunca mais vou esquecer. Mas não foi a minha gente que fez aquilo.Eu não me reconheço neles.
A pata da fera voou para cima do rosto de Rikku, mas as garras a atingiram só de raspão, e fizeram cortes superficiais na bochecha direita da menina.
-Pode me matar , se quiser, mas se o fizer, lembre-se que eu posso vingar as bestas mortas, você não.
-Como faria isto? Você é uma criança!
-Acreditarão muito mais em uma criança do que numa fera, pois eles não irão querer matar a mim, mas a você, matariam com prazer.
-De que adianta o Homem vingar o que o próprio homem fez? Eu posso não conseguir matar aquela horda de gente, mas posso matá-la e devorá-la facilmente!
Foi então que um animal de porte generoso se aproximou bufando Era o Giganoterio salvo por Rikku. Interpôs-se entre a menina e a fera, em posição de ataque. Estava disposto a dar sua própria vida pela da menina.
Voihuu colocou-se em posição de ataque também, e rugiu ameaçadoramente, expondo seus longos e amedrontadores caninos a vista do ungulado gigante, que lhe dirigiu um olhar raivoso.Espumava de fúria.
-Não precisa, meu amigo. Eu posso tomar conta da fera sozinha.
E Rikku dirigiu a fera o mesmo olhar inquisidor que sabia fazer tão bem, e o resultado foi o esperado, ela acabou baixando os olhos e colocou-se em posição de submissão.
Com tapinhas carinhosos no focinho do Giganoterio, a menina despediu-se dele.O poderoso ungulado pôs –se em marcha ,logo sumindo no horizonte.
-Então ainda havia sobrado um! E porque ele tentou salvar a sua vida?
-Por que eu salvei a vida dele, fera falante. Cavalguei-o e o impedi de cair na armadilha dos homens.
-De agora em diante tens meu respeito e confiança.Mas pare de me chamar de fera falante. Meu nome e´Voihuu.
-O sentimento é o mesmo, vindo de mim a você.Mas estás com fome, e vi agora há  pouco  uma manada de Megarodentias passando por aqui. A pista ainda deve estar fresca, e se você se apressar, você as alcança.
-Mas se você é amiga dos animais e os protege, porque esta denunciando aquelas bestas para mim?
-Porque você só caça na medida da sua fome, da sua necessidade, segue as regras naturais, e os predadores sempre dão prefência a indivíduos velhos e doentes, deixando os mais fortes e saudáveis florescerem.
-Mas um dia também você ficara velha ou doente, e não ira querer que te matem.Mas como o Homem é o único que cuida dos velhos e doentes, eles cuidarão de ti nestas horas.Então, enquanto estiver apreciando tais cuidados,não pensará mais desta forma.
-Não contarei com isto, Voihuu.é,com certeza há sapiência nas regras naturais.E os seres humanos as contradizem, e arcam com o ônus desta decisão, debilitando sua própria sociedade para tal, mas sempre beneficiando a outros com isto.E´uma falsa piedade, pois cuidam mas marginalizam os velhos e doentes ao mesmo tempo.A verdadeira piedade é a Natural, e as vezes, por cruel que pareça, a falta de piedade pode ser piedosa.Quando você mata, por exemplo, mata instantaneamente, abreviando o sofrimento de suas presas.Aqueles homens que mataram tanto assim  torturaram os pobres animais antes de mata-los, alongando-lhes o sofrimento angustiantemente.Bom, agora vá, não deves mais passar fome.Um dia minha vida foi poupada,um dia sua vida lhe será poupada em troca também.
As garras de Voihuu se recolheram, e ela virou as costas para a menina, e prosseguiu caminho, caminhando em direção do horizonte...

(Por Continuar)

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