Tal estranha sensação fazia Kirilla se sentir
leve.Tão leve que sua percepção é de que estivesse fluando, levitando, como se
estivesse sob o efeito de uma leve anestesia, habitando um limbo onde ela já
não sabia mais se estava viva ou morta, em vigília ou dormindo, sonhando ou
vivendo uma realidade.
Perdia-se assim a
noção absoluta de sua própria presença espacial, suas referências, onde estava,
noção de tempo e espaço.Tudo lhe parecia nebuloso e estranhamente silencioso.
Súbitamente, divisou
uma parede de pedra, onde via uma sombra de forma humana se aproximando.A
sombra de início era disforme, depois ficou distorcida, mas quanto mais se
aproximava, mais nítida sua forma ficava, apesar de ser apenas uma silhueta.
-Quem é você?
Perguntou Kirilla,
mas sua voz ecoou.
Finalmente a sombra
tomou uma forma masculina, e repentinamente Kirilla parecia ter de alguma forma
voltado ‘a sua infância, pois se via pequena como uma criança diante da sombra.
-Kirilla, minha
filha...
Foi a voz que agora
soou.
-Pai? Eu conheço
esta voz, eu a reconheceria em qualquer lugar!
-Finalmente a
encontrei, finalmente viestes até mim...
Agora a figura se
desanuviava, deixava de ser escura para ser clara, leitosa, mas cada vez mais
definida em seus detalhes. E Kirilla conhecia aquele rosto!
-Vim até ti, sim, eu
vim, pai !
-‘A minha procura,
eu que já estou há tanto tempo morto?
-Vim em busca de um
sentido para minha vida, pai !
-Não o encontrastes
dentro de ti?
-Procurei em tua
vida, teus ensinamentos, minha vivência contigo, minha vivência com os Ke
Gemmars...
-Mas não dentro de
ti...
-De certa forma sim,
pois sempre estivestes no meu coração...
-Não é dentro do seu
coração que deves procurar dentro de ti...
-Então, ensina-me!
Onde o encontrarei?
-No fundo da mais
escura caverna que tens dentro de si. Em teus temores, tuas fraquezas, em tudo
o que lhe apavoras !
Repentinamente, ela
ouviu rugidos de Homotheriuns, de Ursos Gigantes, uivos tenebrosos de lobos
gigantes, gargalhadas sinistras de Hienas Gigantes, urros de Mamutes furiosos,
e esqueletos destes animais passaram por ela correndo em um desfile tétrico e
se desvaneciam em fumaça ao passar por ela, que quase desmaiou de pavor.
-Pai, me proteja !
-Eu estou morto. Mas
eles também. Mas teus temores estão bem vivos dentro de si. É neles que deve se
encontrar, é a eles que deves enfrentar. Eu não tenho como protege-la, por mais
que eu queira,não estaria lhe fazendo um bem, você é quem deve se proteger,
precisa aprender a se proteger a si mesma!
-Não estou
entendendo, ainda não estou entendendo...
-Precisas aprender a
proteger-te de teus próprios temores, de ti mesma.Pois teus temores fazem parte
de você. Tens dentro de ti uma Morte de Dentes Longos, um Leão das Cavernas, um
Urso Gigante, um lobo gigante, uma Hiena Gigante, um Mamute. Enfrentai !
E a figura dele se
transformou numa fumaça branca que tomou a forma do crânio de um felino de
dentes de sabre, que tinha olhos vermelhos e malignamente brilhantes, e que
soltou um urro medonho e trojevante, e depois disse com uma voz assustadora e
cavernosa:
-Enfrentai a Morte
!Enfrentai a Mim !
Kirilla soltou um
grito de pavor e seus cabelos se arrepiaram, sua espinha gelou, parecia que seu
coração iria gelar!
Mas , num flash de
raciocínio, se lembrou das palavras de Kros Ganik, encontrou sua lança e a
arremeteu com toda a força dentro da garganta de ossos.
A caveira felina
gritou outra vez, e a fumaça branca adquiriu tons vermelhos aberrantes.
Depois, formou a
figura de Kros-Ganik novamente.
-Pai?
-Agora penso que
aprendestes. Enfrentastes a Morte, e
enfrentastes a mim, a minha memória. Eis
que pois, minha filha, o Sentido da Vida está na própria Morte!É ela quem
direciona nossas vidas, e é para ela que os caminhos de nossas viddas
inexoravelmente levam, e quanto mais vivemos, mais perto dela estamos.Então, a
Morte se torna Vida quando a Vida se torna Morte,e uma não mais se distingue da
outra, por que não há sentido na vida sem a morte e não há sentido na morte sem
ter antes vivido. Então vivas , para que tua vida dê sentido a tua morte, para
que no dia em que ambas se encontrarem e forem uma só, as entenda, e consideres
que, afinal, valeu a pena !Como dizia Fros Hostorn..aproveite a Vida, minha
criança !
Muito obrigada, pai,
teus ensinamentos me foram valiosos, nunca mais me esquecerei!
-Você me pediu para
te proteger, e eu a protegi te ensinando a se proteger!Vivas sabiamente e repasse
teus conhecimentos para a menina que cuidas e para todos que gostares.Pois
conhecimento sem transmissão não tem sentido, não vive, morre na obscuridão do
tempo impiedoso!
Kros Ganik abriu
seus braços e lançou-lhe um olhar carnhoso e um meigo e luminoso sorriso.
Kirilla o abraçou de
volta e sentiu-lhe amor, calor e proteção. Lágrimas caiam de seu rosto !
-Olho em teus olhos
inundados e vejo tua mãe...vejo amor, carinho, vejo inteligência,
sensibilidade, um coração bom e belo...me enches de orgulho! Nunca a
esquecerei, Kirilla!E não te preocupes, não precisas me pedir desculpas nem
perdão, eu compreendo tuas razões em deixar-me e voc~ estava certa, estás a
fazer tua própria vida e a toma nas mãos, segue em frente e viva intensamente !
O abraço se desfez,
com ela sorrindo por entre lágrimas olhando bondosamente para ele, que lhe
correspondia da mesma maneira. Ele lhe acenou com as mãos e foi desaparecendo,
desaparecendo, se desanuviando, até desaparecer.
A sensação de leveza
passou, e Kirilla se levantou e sentiu o chãoda caverna em seus pés.Estava viva
afinal !
(Por Continuar)