terça-feira, 28 de julho de 2015

Episódio 92- Depois daquela fria manhã de Outono



-E sobre o que quer conversar, Kaede-san? Você me parece tão mudada !Aconteceu alguma coisa durante a sua viagem?
-Sim, aconteceu, querido, algo lindo que me fez ver de novo a luz da vida e querer viver de novo !
-Está me deixando ansioso, Kaede-san !Ah, este corvo me incomoda muito, parece muito bravo, ô bicho soturno...
-Ah, o meu amigo aqui é meu defensor e um grande companheiro! Se ele o incomoda, será isto ciúmes, Tetsuo-kun?
-Não, é que ele dá arrepios, sei lá...
-Amiguinho, vai passear um pouquinho, pode ser ?Você é livre, pode ir onde quiser, depois você volta , tudo bem?
-Cráaaa ! Crocitou o corvo, levantando voo e saindo pela janela e obedecendo as ordens da sua amiga.
-Tão fiel, tão leal, tão dedicado, devotado a mim, não como alguém que conheço...
Disse Kaede, em um risinho. Tetsuo entendeu a indireta e a ironia, e disse:
-É, parece que você não mudou tanto assim, afinal!
-Será mesmo, meu bem? Ou você virou cego e surdo? Bom, mas ainda assim eu vou te contar sobre o que me aconteceu na minha viagem: bom, depois do meu acidente, eu fiquei desgostosa da vida, fiquei tremendamente deprimida, perdi o gosto de viver, queria morrer, sumir, minha auto estima foi lá em baixo, etc. Mas foi, de certo modo , meu amigo Corvo que me deu a idéia e me animou a fazer esta viagem. No começo eu tinha inveja da liberdade dele e tinha muita vontade de poder voar e ser livre como ele e não ficar presa nesta cadeira de rodas, que eu via como uma prisão para mim. Mas com o tempo ele foi me mostrando, do jeito dele, que ele estava comigo por opção, e que ele gostava de mim de verdade, não por dó, como eu pensava antes. A partir deste reconhecimento, comecei a pensar com outros olhos o que me aconteceu e sobre a vida. Que tipo de mulher eu era antes deste acidente? Uma pessoa fútil, submissa, uma coadjuvante que existia só para manter a fortuna da família no seio da família, e que eu no fundo dependia de todos e todos dependiam de mim, e fui tendo uma visão mais crítica desta família, e passei a ficar amarga, severa, insuportável. Eu mesma não me suportava, não aguentava olhar para o espelho e me ver paralítica, e me achava inferior a qualquer coisa no mundo. Só que mais uma vez meu amigo corvo me ensinou uma lição: ele tinha abandonado o bando dele, que eu via pela janela empiriquitados nos fios elétricos, nos postes,para ficar comigo por que quis. Não, não foi porque quis, foi por que me amava. Ele me defendia e me alegrava e se deixava acariciar e nunca desistiu de mim, ele queria me ver feliz! Então resolvi embarcar nesta viagem e o levei comigo e qual não foi minha dor ao ter de coloca-lo numa gaiola para viajar. Lá, passeando pela praia, com meu maiô de velha, percebi que as pessoas me olhavam feio ao ver ele no meu ombro, e o olhar dele para elas. Então vi que não só eu, mas ele também era vítima do preconceito, e um dia alguém me disse que eu parecia uma bruxa com o corvo sempre ao meu lado. Pesquisei sobre bruxas na internet e o que descobri foi maravilhoso: bruxas eram mulheres livres,poderosas, subversivas, diferentes, que ousavam ser diferentes e desafiavam a resistência das pessoas pelo diferente, desafiavam o machismo da sociedade, ousavam ser melhores que as outras por serem diferentes, originais, mas a Sociedade, talvez por isto mesmo, as prendia em estereótipos, e as odiavam por elas não se encaixarem em formas sociais pré fabricadas, que a sociedade adora,estereótipos estes dos quais elas fugiam e rejeitavam,e, como vingança, as outras pessoas as taxavam de loucas, doentes, hereges, as queimavam nas fogueira, as torturavam, as massacraram, mas elas resistiam!
Então, numa rede social, conheci uma mulher que, como eu, era paraplégica , mas era aficionada da bruxaria e tinha paixão por tudo quanto é coisa que se relacionasse pelo assunto. Marcamos um dia para nos encontrarmos e nossas cuidadoras nos deixaram sozinhas na beira da praia no final de uma tarde muito bonita. Ao me ver como eu estava, ela, que agora já sabia da minha história de vida, não se conformou e me falou da vida dela e do acidente de carro que a vitimou. Quando meu amigo corvo a viu, a aceitou imediatamente como minha amiga, e ela também se afeiçoou a ele. Ela me explicou que bruxas tem uma ligação muito forte com a Natureza, e que na verdade, não são inspiradas pelo Mal, mas pela vida. Elas foram associadas ao mal, ‘a vilania por conta da sociedade nojenta que não se conforma de elas a desafiarem e irem contra ela, mostrando seus defeitos e suas falhas. E  nisto, iniciou-se o por do Sol mais lindo que já vi na vida, e fiquei extasiada, maravilhada,e pude perceber que a vida é muito mais do que eu ou minha depressão pensávamos, e que a liberdade é mental, não apenas física, e que a cadeira de rodas não era um inimigo, um fator limitante, pois não me impedia de aguçar minha sensibilidade. Ela percebeu meu estado emocional e me disse que só mesmo sendo diferente, subversiva e autêntica eu conseguiria apreciar mais a vida e tudo de bom que ela tinha a me oferecer, e que isto, esta rebeldia maravilhosa chamada sensibilidade, deste encontro com minha natureza, minha essência, minha diferença é quem me permitiam perceber a grandiosidade da Vida, da Natureza, e me libertar  das grades em que as pessoas comuns e a sociedade queriam tanto me prender, e que eu, ao ficar assim desgostosa da vida, deprimida, me envelhecendo a mim mesma antecipadamente, estava fazendo o jogo deles, exatamente o que eles queriam, entregando os pontos, me excluindo e me anulando, e que se eu continuasse assim, eu iria desaparecer como pessoa humana,eu mesma estava me colocando na fogueira para todo mundo assistir e me aplaudir ao me ver morrendo por dentro e por fora.
Aquilo fora para mim um grande choque, e a ficha caiu, do que eu estava fazendo comigo mesma, e do que as pessoas estavam fazendo comigo, e fiquei horrorizada!
Chorei muito e minha amiga chorou também, recostou a cadeira dela ao lado da minha e me abraçou. O Corvo veio em meu ouvido e...começou a cantar !Cantar, Tetsuo-san !Cantar ! Voc~e já viu um corvo cantar na sua vida? Pois ele cantou, cantou lindamente, com a pobre voz dele, do jeitinho dele, e era visível seu esforço...eu me emocionei muito ! É, aquilo era uma prova de amor, de sensibilidade ,de beleza de coração e alma, devoção, dedicação, um pequeno gesto, mas de grande significado !Sabe, foi doloroso para mim, muito doloroso, mas aquela noite linda mudou minha vida para sempre !Decidi que seria uma bruxa em minha alma e coração, de verdade, não o estereótipo de bruxa, como a minha irmã optou para ela. Aquilo que ela faz não é a verdadeira bruxaria, ela tem uma alma má e usa o espírito livre das bruxas para o mal. Eu uso para o bem. Minha amiga me mostrou que tudo que sofre preconceito no mundo tem um fundo bom que mostra para as outras pessoas o que elas tem de ruim nelas mesmas e que elas não querem ver nem encarar.Não é a Realidade que nos limita, é a realidade que acreditamos ver em nós mesmos que nos limita, se a vemos como algo de ruim, de feio, de doente.Se nos libertamos desta imagem que fazemos de nós mesmas e nos insurgimos contra esta realidade interna que muitas vezes é provocada ou mesmo imposta por outras pessoas, se nos livramos do preconceitos contra nós mesmas, nós amadurecemos, evoluímos, progredimos, nos libertamos e vivemos a vida muito mais intensamente ! Esta minha amiga é uma inglesa que mora aqui no Japão há décadas, e se chama Hellen. E Hellen-san me abriu os olhos como nenhuma outra pessoa, e me disse que não era só para eu me libertar, mas libertar as outras pessoas que convivem comigo e as deixarem ser elas mesmas, pois ,sem perceber, eu as estava prendendo, eis que pois amar é libertar, não prender !
Procurar entender e aceitar as pessoas como elas são, suas naturezas, seus jeitos de ser, suas originalidades e autienticidades é outra maneira de amar,pois quem ama inclui sem questionar,incondicionalmente, não existe amor verdadeiro sem uma inclusão incondicional, de coração !

(Por continuar)

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