Depois de mais algumas aulas, ele já escrevia
perfeitamente, e ela sabia que ele lia e entendia tudo o que escrevia, pois
escrevia no papel tudo o que tinha entendido dos livros da coleção dele.
Agora era a hora, no entender de Adora, de
aprender a interpretar textos. Ou ela achava que ele tinha de aprender, pois os
livros científicos dele, ele interpretava perfeitamente, já que os dois
conversavam escrevendo perguntas e respostas no papel.
Mas quando ela deu um livro de literatura para
ele, ele decepcionou fragorosamente. A linguagem científica era precisa,
concisa, lógica, fria, racional, sem nenhum fator emocional a interpretar. E
era aí que começavam os erros de Damian, pois ele estava acostumado a
interpretar apenas seus próprios sentimentos, não os dos outros. Não que ele
não interpretasse os dos outros, não o soubesse fazê-lo, isto ele fazia
bem-quando queria.
A questão era a de que muitas vezes ele se colocava no lugar das pessoas reais, mas não
eram na verdade as reais, eram as
idealizadas por ele, prevendo um comportamento e sentimentos que ele
tinha colocado nas pessoas reais que ele idealizava na cabeça e não como ela
eram realmente. E aí a chance de errar era grande. Por que ele imaginava a personagem do livro, fazia sua
interpretação dela, que após passar pelo inconsciente dele ganhava uma
personalidade totalmente diferente da personagem descrita no livro, pois a
personagem agora era como ele queria que ela fosse, não como o autor do livro
dizia que ela era. Ele se apropriava das personagens e elas deixavam de ser, na
sua imaginação, não como o autor do livro imaginou, mas como Damian queria que
fossem.
Só que Adora não sabia de nada disto, e quebrava
a cabeça para tentar entender como ele chegava a conclusões de interpretações
do texto tão diferentes das dela !
Outra coisa que ela não tinha como saber é que
ele sabia e tinha entendido perfeitamente como eram e como se comportavam os
personagens do livro, pois ele os utilizava como ele eram realmente para depois
criar em cima e adicionar sua visão deles.
E que cada pessoa que ele conhecia na Realidade
tinha um correspondente no Mundo Interno de fantasia, já modificado por ele
para ficar do jeito que ele gostaria.
Naquela noite, depois da aula, aturdida ela
tinha a cabeça fervilhando de dúvidas.Ela se perguntava se, de repente, a
interpretação de textos seria uma só correta e qualquer interpretação desviante
ou diferente seria errada. Estaria ela na verdade, querendo direcionar a
interpretação de texto dele para a dela, fazendo com que ele fosse forçado a
ver o texto e ter sempre as mesmas opiniões que ela? Estaria ela agindo de
forma ditatorial? Mas não seria a educação, em súmula, em essência, a imposição
de conhecimentos e formas de chegar ao conhecimento padronizadas? Seria a Educação
uma forma de condicionamento, amestramento, impositiva e ditatorial por
natureza? Afinal, ensinava-se como verdade absoluta e indiscutível os
conhecimentos já consagrados por centenas de estudiosos e cientistas, através
dos séculos, que ninguém se atreve a contestar por que já incorporados ao Senso
Comum e ao Bom Senso , e ela já estava tão acostumada a ensinar todo dia, todo
ano, para todas as classes sempre os mesmos repetitivos e batidos
conhecimentos, e, de certa forma ela se restringia e restringia seus alunos, ao
restringir a uma visão estreita e compactada de apenas certos conhecimentos
selecionados, em uma prática que não estimulava o senso crítico nem a visão
crítica da sociedade e da realidade. Então não estaria Damian no fundo correto
em mostrar uma interpretação diferente e em ser arredio em aceitar a maneira de
interpretar os textos como ela queria? Talvez isto não fosse um defeito,
afinal, e sim uma qualidade. Ela então chegou ‘a conclusão de que ficara tempo
demais prestando atenção em tentar fazer ele interpretar como ela queria, e em
achar que tudo o que ele dizia eram erros, sem realmente prestar atenção no que
ele dizia e como ele realmente via o texto, e que, de repente, ali naquelas
interpretações dele, poderia estar a chave para descobrir o funcionamento da
mente autista, do pensamento autista, do modo autista de ver a realidade.
Ela
então, ao final de suas elucubrações silenciosas e solitárias, chegou a
conclusão de que ela precisava mudar de método e prestar atenção e valorizar as
interpretações dele, e tentar fazer ele justificar logicamente suas
interpretações.
Porém, algo ainda a preocupava:
Interpretar textos era uma coisa, interpretar
pessoas reais é algo muito diferente, e mais complexo.E se ele não estava
usando o Senso Comum e Lógico para interpretar as pessoas, ele teria sérios
problemas de relacionamentos com as pessoas, por que as pessoas esperam das
outras uma interpretação neurotípica delas mesmas, baseada no bom senso, no
senso comum, que nem percebiam, isto era para elas simplesmente lógico e
natural, um hábito arraigado. Ninguém esperaria a interpretação autista delas,
pois não foi a para a qual foram condicionadas a vida toda para receber, por
isto parecia para elas totalmente alienígena. Mas teria ela direito de
condicioná-lo a esta interpretação padrão? Será que só esta interpretação padrão
era a correta? Não seria essa cheia de vícios, e não erraria ela muitas vezes? Afinal
as pessoas não são padronizadas, são diferentes entre si. Mas as pessoas então
é que teriam de aprender a entender esta nova interpretação autística delas?
Mas como se faria isto, se elas já estavam tão profundamente condicionada?
Nem ela mesma sabia responder estas questões no
momento, tudo que ela sabia é que estava com uma dor de cabeça monstruosa de
tanto pensar, e se levantou da cama, foi até a cozinha, esquentou um copo de
leite com chocolate no micro-ondas e tomou um remédio para dor de cabeça e
depois voltou para a cama tentar dormir novamente.
(Por continuar)
A atualidade descrita nestes palavras ... todo as pessoas do mundo taria q ler . Cristiano ... obrigada !
ResponderExcluirA atualidade descrita nestes palavras ... todo as pessoas do mundo taria q ler . Cristiano ... obrigada !
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