Ainda nem tinha amanhecido quando o Diretor nos acordou e nos
ofereceu um lauto café da manhã.
Depois daquilo fomos na sala de vigilância ver o resultado da
batalha do dia anterior:
Haviam mortos por todos os lados, mas em meio aos destroços do que
um dia fora um Presídio, algumas pessoas desarmadas perambulavam como zumbis em
meio à uma intensa neblina, que dava um certo aspecto de sonho ao lugar.
Tudo parecia confuso e desordenado, e muitos dos prédios internos
estavam destruídos ou em ruínas. Mas os muros, ah, estes continuavam impávidos!
Achamos que agora já estava seguro, e saímos da caverna , abrimos
a porta e subimos para o nível do solo, pelas escadarias semi destruídas.
Ganhamos o nível térreo e saímos para a praça central, onde
bancos, palanque e camarote estavam em frangalhos.
As pessoas pareciam nos ignorar, completamente alheios a tudo. Livros
, ou o que sobrara deles, estavam espalhados para fora da biblioteca, da qual
só sobraram escombros.
Todos nós, consternados, olhávamos para ela com saudades, ela que
tanto nos abriu os olhos e fez de nós o pouco que éramos.
Também nós estávamos reduzidos à nossa humilde condição humana,
mísera que fosse, conseguíamos ver beleza nela. Não estava ali a contemplar a
multidão que restara, quem sabe umas cem almas, um Diretor, um Chefe da Polícia
Secreta, um Vice Diretor e uma Primeira Dama. Estavam ali, diante daquela gente
moribunda e cheia de esperança em nós, em nós buscando uma salvação, um senhor
de idade, um homem de meia idade e dois jovens.
O Diretor já estava sem o quepe, a capa e o sobretudo, e eu, o
133144 e a 500800 tiramos as nossas e as deixamos cair no chão sujo. Éramos
gente como eles, afinal.
As primeiras luzes da manhã começavam a despontar no céu quando
133144 foi ao encontro dos
sobreviventes, os cumprimentou e lhes dirigiu palavras de conforto. Eu, o
Diretor e a 500800 fomos lá também e fizemos a mesma coisa.
Um senhor de idade chegou para 133144 E LHE DISSE:
-Nós não temos mais nada a perder. Nós os seguiremos para onde
forem, e obedeceremos suas ordens. Apenas queremos sobreviver. Por favor nos
ajudem !
-Não haverá mais ordens. Vamos reconstruir tudo juntos. Vamos
apenas viver uma nova vida, mais simples, daqui para a frente. Não dependam de
nós para viver, vamos depender uns dos outros e decidirmos tudo juntos. Isto
não é uma ordem, é um convite!
-Muito obrigado, Cidadão 1! Assim será !
-De nada, imagine. Aliás, agora vocês, como nós, não são mais
presos, são Cidadãos, todos nós. E se quiserem, deixaremos os números de lado e
teremos nomes, nossas próprias identidades !Vamos viver !
-Vamos viver !
Gritou a pequena multidão, em resposta às palavras de 133144.
Então sobreveio a neblina, ainda mais forte, e não conseguíamos
enxergar um ao outro. Log ela se dissipou e a luz invadiu nossos olhos com um
impacto tremendo e qual não foi nossa surpresa ao esfregarmos os olhos e
abri-los de novo:
O Sol surgia majestoso e os muros do Presídio tinham desaparecido
completamente, como aliás, as ruínas do Presídio em si. Havia agora um imenso
vazio, no meio do nada, verdadeiro deserto, mas um deserto colorido pelos raios
do sol que nascia,eis que um novo dia , um novo futuro amanhecia, e ficamos
todos boquiabertos, surpresos, emocionados, pois era a primeira vez em nossas
vidas que víamos um amanhecer!
O deserto porém , apesar de parecer estéril, era cheio de cores,
pois refletia a alvorada e o céu, oh, o céu em toda a sua imensidão nos dava a
nossa consciência de nossa própria dimensão perante a Natureza que nos sudava,
e nos senimos fazer parte dela, e então nos veio aquela sensação grandiosa de
sermos tão belos quanto ela, ao vermos o espectro das cores refletidos em
nossas peles, nossas roupas, parecia que nos desvanescíamos no ar, e se aquilo
era a Morte, que fosse, por que era linda, e lágrimas brilhavam multicoloridas
carregadas pelo vento, levando emoções uns aos outros como nunca antes !
-Parabéns, garoto, você conseguiu a sua revolução, e ela é linda !
Disse o Diretor, abraçando 133144 e 500800.
Todos nós o cumprimentamos e 133144 sorria torto, desengonçado,
todo sem jeito,mas emocionado. E recebeu os aplausos da pequena multidão, para
os quais contribuímos também !
133144 estava orgulhoso de si e só conseguiu dizer:
-Se eu soubesse que era tão fácil, tão simples...não foi uma
conquista só minha, foi de todos nós, nós todos aqui presente fizemos juntos,
muito obrigado a todos vocês !
Ele tinha a voz embargada e o dia finalmente acabara de amanhecer.
Então soltou um sorriso por dentre as lágrimas e começou a
caminhar em direção ao Sol. Para onde ia, ninguém sabia, mas de qualquer forma,
nada mais nos segurava ali, num lugar que não mais existia e que agora daquele
imenso Nada parte fazia. Mas se estávamos em lugar algum, tanto fazia para onde
iríamos, só sabíamos que parados não ficaríamos, não poderíamos mesmo
ficar.Talvez aquilo não fosse um Nada, afinal, apenas estivesse tudo por
contruir, afinal, uma revolução é só um início, um parto de uma nova Vida, um
Tudo por ser construído.
Mas parecia fazer parte de nós, de nossa consciência, que cada
passo a frente seria mais um tijolo a ser firmado, de um futuro comum em
construção do qual não mais seríamos mais presidiários, mas sim, operários.
Onde nos aninharemos amanhã?
Talvez em nossas convicções, talvez em nossos corações, esta
questão não nos importava mais. Não estávamos, afinal, desabrigados, teríamos
na nossa jornada o abrigo do céu azul ou das estrelas, e o que encontraríamos
pelo caminho?
O que construiríamos com nossas mãos, sob o comando de nossas
mentes, nossos pobres passos conscientes seria o que teríamos por nos apegar!
Toda pegada na areia é uma marca de transição, um passo que foi
dado, uma nova decisão , de um caminho em construção, onde iremos pavimentando
nossos próprios caminhos, nossa própria direção, cada um de seu jeito, cada um
na sua própria velocidade, cada qual com sua opinião, aquela não era, pois,
caravana ou procissão, pois não o seguíamos como um líder, em fila, mas todos
nós cento e quatro, perfilávamos lado a lado, sem chefia, tão diversos em
tantas coisas, que até desafiava a Razão!
Fui o único a olhar para trás e o que vi surpreendeu a minha
noção:
Lá estava o Presídio de novo, e do alto de uma das torres de
vigilância, estavamo outros 100169, Cidadão 1, 133144 e 500800 nos acenando um
Adeus.
Aquele velho 133144 tinha no dedo de sua mão um passarinho, que o
velho Diretor acariciava, e todos tinham lágrimas nos olhos, como eu, ao
lembrar de todo o nosso passado, tudo o que ali vivi.
Foi então que o passarinho, aquele tão querido chamado Liberdade,
veio pousar na minha mão. Ele poderia ter voado para qualquer lugar, mas veio
até nós por sua própria decisão.
Disse a ele então, ficando para trás por algum tempo:
-Agora sim o compreendo e o vejo como realmente és. Por que ser
livre é ter suas escolhas, e ir onde quiser, fazer o que se quer por sua
própria decisão. Então ser livre é decidir, escolher, exercer Razão e Coração,
pois se a Razão nos dá Responsabilidade
por nossas escolhas, o Coração nos acolhe e nos dá a direção!
O passarinho voou rumo ao infinito, onde era, afinal , seu lugar,
ele na verdade o tempo todo foi nosso Mestre, como poderia eu deixar de
agradecer-lhe?
Voltei a caminhar com os demais. Cento e quatro nuvens no céu,
cento e quatro estrelas no firmamento, assim seríamos todos nós doravante,
tendo este mesmo céu sem limites a nos
mostrar o quanto éramos pequenos e ao mesmo tempo imensos, ao infinito
caminhando nós também, mesmo sabendo que este nunca alcançaríamos.
De nós quatro, companheiros na vida, no passado e no presente, um
alcançou a Sensibilidade, outro a
Consciência, outro o Conhecimento e outro
a Experiência, cada um no seu papel, na sua vitória particular, eis que
nosso novo caminho a trilhar, seria nossas vidas, nosso abrigo, nosso futuro e
nosso lar !
FIM
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