terça-feira, 29 de julho de 2014

Conto: Relexões a respeito de uma breve visita a um passado morto





Reflexões a respeito de uma breve visita a um passado morto



Tratou-se de uma breve, mas estranha experiência, a qual jamais esquecerei na vida, e à qual estou ligado para todo o sempre. Eu estava dormindo em minha cama, naquela madrugada, e um defeito no computador de orientação da minha nave a desviou da rota original. Eu fora designado, policial espacial que sou, para patrulhar a rota Antares-Andrômeda, e , por um motivo que ainda desconheço, estava agora chegando  ao cemitério de naves , distante quatro horas a oeste da rota prevista .Então, o leve zumbido dos motores  da nave cessou, assim como a débil trepidação contínua que eles causavam, e foi isto o que me acordou. Quando olhei pela janela, vi o cemitério de naves espaciais já muito próximo, e então a nave parou, ficando só a escuridão e o frio do espaço.
Na verdade, a escuridão não era total: o cemitério ficava próximo a um pequeno sistema solar, com uma estrela pequenina a uma distancia segura, mas seu brilho iluminava fracamente as naves destruídas ou semi, revelando seus contornos misteriosos. Curiosamente, minha nave parou ao lado de uma nave gigantesca, um transpacial, o equivalente de hoje em dia aos navios transatlânticos de passageiros do século vinte. Seu desenho , inclusive, lembrava muito estes antigos navios. Pelo que consultei no computador, era  a “Rainha das Galáxias II “, uma nave em que seus passageiros morreram misteriosamente em seu vôo inaugural, datada de 2110, ou seja, tinha exatamente cem anos de existência. Ninguém jamais soube por que esta nave foi encontrada à deriva, com passageiros e tripulação mortos,  quase já em Andrômeda, faltando apenas quatro dias para completar sua jornada.  Apesar de algo assustado, pois os boatos diziam que  o cemitério era maldito, e que ninguém voltava de lá vivo, meu dever era investigar, e assim, vesti meu uniforme, coloquei minhas pistolas lazer na cintura, e fui até a sala do finger de atracação.
O que me aturdia era que minha nave estacou estranhamente bem em frente do ponto de atracação da grande nave, e na distância certa.
Estendi o finger, que se acoplou perfeitamente à escotilha da outra nave. O computador da minha nave acusou que a nave, embora tivesse muito pouca energia residual, ainda tinha atmosfera de oxigênio, e a gravidade era mantida a 0.95 atmosferas, e a temperatura ambiente era fria, oscilando entre 10 e 14 graus centígrados  positivos. Então, estava seguro. Acendi minha lanterna de plasma, percorri o curto corredor do finger e entrei na grande nave.
Estava tudo absolutamente escuro, e então, a luz se refletiu, assustando –me. Era um imenso espelho, em um enorme salão. Porem, minha imagem no espelho não durou muito: repentinamente foi substituída por uma imagem turva, leitosa, brilhante e vaga, difusa, mas que se consolidou em seguida.
Quando sua consolidação terminou e esta figura saiu do espelho, vi, espantado que era uma garota, por volta dos vinte anos, em um diáfano e semitransparente vestido, muito leve, e farto, em medidas, que esvoaçava  delicadamente tão logo uma gelada brisa o tocava, brisa esta que ia e vinha, não se sabe de onde.
Tratava – se de uma linda moca, magra, extremamente atraente e sensual, com corpo curvilíneo e esguio, generosas e delicadas curvas, longos cabelos louros, e gigantescos olhos de um azul profundo, e, no entanto estava pálida com cera, mas ao mesmo tempo uma aura dourada e muito brilhante a rodeava toda, e ela ensaiou um sorriso tímido. Quando tocou minhas mãos, elas estavam geladas, mas a pele era macia e sedosa.
Um fantasma pensei, só pode ser um fantasma!
Mas havia algo magnético nela, que me atraia, enchia meus olhos com sua beleza. Ela me abraçou, com risinhos, mas não falava nada. Então as luzes se acenderam.
O salão estava em estado miserável, mas podia-se ver como um dia fora sofisticado e ainda havia sinais de requinte e bom gosto por toda a parte, detalhes sobreviventes  e resistentes ao abandono.
Ela me conduziu até a uma cômoda, acima da qual, jazia , muito empoeirada, uma velha foto, daquela menina descansando a sombra de uma arvore. Estava desbotada, empoeirada e mofada, mas ainda era possível distinguir muitos detalhes.
A garota apontou para a foto, e apontou para si mesma. Depois, olhou-me  e  com um  alegre sorriso desafiador e cheio de confiança estalou os dedos, e , o que vi, deixou-me deslumbrado:
Quando dei por mim, o salão estava de volta ao velho esplendor, como se fosse novo em folha, brilhando de limpo, como um dia o fora.
Sons de violinos começaram a tocar e dançamos uma valsa, trocando olhares. Então, ela conduziu-me através do espelho, e mergulhamos em um campo florido, o qual notei, era o mesmo do quadro. Porem o ambiente era todo sépia e cinzento, desbotado, parecia morto nas cores, mas cheio de vida, e ela corria atrás das borboletas, esfuziante, com uma alegria de viver incontida, que me comoveu pela sua intensidade.
Mas a mesma alegria dela não me contagiava, pois eu estava vivendo um passado que não era o meu, um passado morto, pertencente a uma pessoa que já não fazia mais parte do mundo dos vivos, a qual estava irremediávelmente presa a seu próprio passado, capaz de levar outras pessoas para conhecer o que viveu, mas incapaz de vivenciar o passado ou mesmo o presente das pessoas vivas.
Houve por minha parte uma profunda compaixão por ela, um profundo entendimento de que isto não era provavelmente um destino somente dela, mas de todos os vivos, pois um dia todos morrem, e como cada pessoa somente ė capaz de viver sua própria vida e seu próprio passado, provavelmente ao morrer, ficam presos a sua própria historia de vida, eternamente, suspensas no ar, no tempo, por assim dizer, o tempo para quem morre para de repente, não existe mais tempo presente, apenas um passado estacionado, que se repete até o fim dos tempos, indo do nascimento à morte, repetições iguais do mesmo período histórico que a pessoa viveu, um passado, que, se enquanto estamos vivos ele ė sempre colorido, sonoro e dinâmico, pelo que presenciei, quando morto ė quase parado, sépia e cinzento, e restrito e travado no intervalo de tempo em que a pessoa viveu, os sons são ecos distantes e quase calados, como em um sonho estranho que nunca acaba, um pesadelo, uma pantomima grotesca de imitar uma vida passada já morta. E como era triste estar fadada a tal eterna existência, ou seria uma falsa existência, a existência tênue de uma não existência?
Tudo no passado dela parecia envelhecido, e mesmo vendo que ela tinha se transformado em uma menina de cinco anos, via – se no rosto dela as marcas da passagem do tempo, ela não mais brilhava, a aura dourada não mais brilhava, nem mesmo existia, ela estava murcha e ressecada.
Ela olhou para mim, com o mesmo sorriso infantil e inocente, tímido e brincalhão ao mesmo tempo, e sorri para ela.
Um gesto tão sutil resultou em um grande júbilo: ela cresceu, ficou com vinte anos novamente, abraçou - me  e beijou-me um beijo gelado , mas carinhoso, seu rosto iluminou-se em um sorriso franco, seus olhos brilharam, faiscantes, e a aura dourada dela retornou, resplandecente em todo o seu brilho. Ela parecia ter remoçado.
Conduziu-me pela mão, e atravessamos o espelho novamente. Lá estava o salão, novo em folha, brilhante. Ela me abraçou novamente e disse em meu ouvido :
-Obrigada !
Então as luzes começaram a tremular, ouviram-se rangidos tenebrosos, e ouviu-se um miado pavoroso. Uma sombra parecia estar na iminência de aparecer, e a garota respondeu com um grito de terror. Assustada, ela deu a entender que precisava abreviar minha visita, e encostou a testa dela na minha, e uma de suas mãos tocou o quadro. Quando dei por mim, lá estava a minha imagem no quadro junto à dela!
Ela me conduziu pela mão  corredores adentro, enquanto o miado apavorante parecia se aproximar, e corríamos esbaforidos. Entramos em outro salão, que parecia o mesmo em que eu já estivera, mas agora já puído e escuro, e entramos em outro espelho, e então, ela empurrou-me para fora, e sai  através do espelho do meu quarto em minha nave. Ela acenou para mim, mandou – me um beijo, e voltou espelho adentro, a imagem dela desapareceu e a minha apareceu. Antes disto houve tempo para que eu também acenasse para ela e lhe retribuísse o beijo mandado. Escutei então o finger da minha nave se recolher. Subi à ponte de comando da minha nave, e o painel de controle, antes escuro, iluminou-se e os motores religaram - se sozinhos, e a nave começou a se mover. Voltei correndo ao meu quarto e olhei pela janela, e a vi acenando por uma escotilha, acenei também, e ela sorriu, rosto iluminado. Aturdido com tudo o que vira, subi novamente a ponte de comando, enquanto a nave acelerava celeremente sozinha e deixava o cemitério de naves para trás.
Lembrei-me da minha imagem no  velho retrato, e não conseguia parar de pensar: agora faço parte do passado dela, uma parte de mim está morta e vive um mundo morto, parado na vida e no tempo. Mas pelo menos ela já tem companhia. O que será que me espera, no final de minha vida? O que esta moça misteriosa fará com esta parte do meu ser?
Terei eu este tempo todo vivido mesmo tudo isto ou quem sabe, sem me dar conta eu estivesse apenas sonhando e teria   acabado de acordar?
Não importava mais, fosse o que fosse, doravante eu não iria mais conseguir dormir...

Fim

 

Cristiano Camargo

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