Existem algumas personagens de meus livros que acredito merecerem uma
densa e profunda análise crítica,sobretudo do ponto de vista
psicológico,devido principalmente a complexidade destes.
Hoje falaremos de Maki Okui,da saga Naquela fria manhã de Outono:
Maki é uma personagem carismática e emblemática,que ,em alguns aspectos, lembra a minha mãe.
Como
esta,teve e foi obrigada a conviver com muitas perdas na vida:perdeu os
pais muito cedo, foi criada pela irmã mais velha como se fosse filha.Só
que esta irmã mais velha, Nami,também era, por sua vez,complexa:dotada
de grande senso de responsabilidade,aliado a uma certa paranóia
obcessiva, procurava manter Maki distante de tudo o que pudesse chocá-la
ou traumatizá-la,especialmente do amor e do sexo,numa super proteção
desmedida.
Os efeitos nocivos desta superproteção logo se
manifestariam:Maki era extremamente dependente tanto emocionalmente como
financeiramente de Nami.Quando Maki tinha 12 anos de idade, Nami já era
uma executiva numa grande empresa.Porém o que Nami ignorava era que
Maki era alvo constante de bullying na escola.
Tudo por que Maki era
uma menina reservada, absurdamente tímida,infantilizada ao estremo(ao
crescimento da mente dela em muitos aspectos não acompanhou o do
corpo,sendo muitas vezes equivalente ao de uma menina da metade da idade
dela),absolutamente isegura e dependente das pessoas, sem opiniões
próprias, sempre se guiando pelas dos outros, especialmente as de
Nami).Ela também era, além de isolada e anti-social,muito dócil e sem
malícia alguma(frequentemente outros alunos passavam a mão nela ou a
encoxavam e ela não via nada de mais naquilo,não via maldade, e também
não sentia nada).
Tinha uma personalidade muito humilde e submissa.Gostava de se sentir
útil e estava sempre ajudando os outros, sua grande alegria na vida, mas
sem pensar nunca em si mesma.Parte da culpa de sua insociabilidade e
isolamento eram devidos a Nami a ter proibido desde pequena a ter
amigas,e ela foi severamente reprimida e auto reprimida para não ter
amizades.Embora sob um verniz de muito(doentiamente obcessivo)carinho
,existia uma violência flagrante nas palavras da irmã,altamente
dominadora.Desta, com excessão de uma única vez,nunca infligiu
violência física a Maki,apenas uma vez em que esta levou um grupo de
amigas para casa;depois que elas foram embora, Nami ficou descontrolada e
deu um tapa no rosto da menina.Porém assim que se conscientizou da
reação dramáticamente lacrimosa de Maki,ela se arrependeu e procurou
compensar com carinhos.
Maki é o arquétipo da sofredora:quando Nami
morreu num acidente de avião,para Maki, que tinha agora 13 para 14 anos
de idade agora,com a morte de Nami,o mundo dela desmoronou.
Enquanto Lune era pura razão, Maki era pura emoção.
Ao
ser levada para um orfanato só para meninas,Maki sentiu o mundo ao seu
redor se transformar:acabara aquele mundo cor de rosa,
infantil,inocente, amoroso e carinhoso,cheio de mimos e regalos,um mundo
que na cabeça de Maki, só habitavam ela e Nami.Todas as outras eram
pessoas cinzentas e sem face, mas(no ver dela)boazinhas(quando ela
sofria bullying e era humilhada, ela ficava apática e submissa,sem o
menor senso de realidade,podendo lamber os pés de alguém ou mesmo o
chão, sem reclamar ou sofrer,pois ela era incapaz de ver maldade nas
crueldades das pessoas que dela se aproveitavam).
Quando ela caiu em si que estava sozinha num orfanato, onde não havia
mais ninguém para protegê-la,e a gerente era uma megera masoquista e
cruel, e em que várias colegas eram igualmente cruéis,seu mundo cor de
rosa ruiu e passou a realidade a ser sentida por ela como
hostil,perversa,opressora, esmagadora.
Maki nunca teve de se virar
antes, e viu-se sujeita a muito mais opressão,violência e humilhação do
que nos tempos da escola,a ponto de ela ter saudades daqueles tempos.
Enquanto isto, o namorado de Nami,corria contra o tempo para ganhar a guarda de Maki,
Dez
meses depois de Maki entrar no orfanato,ela foi adotada por
Tetsuo,namorado de Nami.Porém, Tetsuo era muito diferente de Namium
professor de ensino médio,solteirão inveterado,galanteador de
mulheres,por quem todas se apaixonavam, e que delas se aproveitava com
objetos,não era o tipo de homem acostumado a se importar com os outros.
Muito
menos tinha sido talhado para ser pai.Mas como pai adotivo de Maki ele
até que não se saiu tão mal:ele se esforçava para compreender Maki e a
superprotegia(mas sem a obcessividade e compulsividade de
Nami),principalmente por que se condoia dela.
Quando Maki entrou para
a casa da família de Tetsuo Amagawa,ela adentrou um novo mundo,que
voltava a ficar cor de rosa- embora agora, depois de todo o sofrimento,só
a cor de rosa já não bastasse mais para Maki, ela queria todas as
cores.É quando ela começa a tomar consciência do tratamento
superprotetor e condescendente das pessoas para com ela ,e começa a se
revoltar contra não apenas tudo isto, mas também sua dependência
emocional das pessoas.
Se ninguém conseguiria se assustar tanto
quanto o Ele de Consciência de Viver,igualmente ninguém conseguiria se
entristecer e deprimir tanto quanto Maki.Seus sentimentos são tão
profundos e sensíveis que conseguem comover todos ao seu redor.
Sua rebeldia, no entanto,se faz através justamente de o que as pessoas superprotetoras mais tentaram poupa-la:o sexo.
Isto na verdade seria impensável numa garota super tímida,que a menor provocação se encolhia toda e dizia:
-Ai, que vergonha!
Mas
a descoberta do amor e do sexo foi a mola impulsora para superação
destas limitações.Sua maneira de contestar e dizer a pessoas que odiava
ser tratada como criança e que não queria mais o dó delas foi a mais
chocante possível e isto era proposital:não, ela não pensava, ela apenas
sentia,mas inconscientemente,de algum modo ela sabia que só chocando
ela poderia abrir os olhos das pessoas e chamar a atenção das
pessoas,numa profunda e tocante necessidade de auto afirmação e de ser o
centro das atenções de qualquer jeito.Isto é algo que ela tem comigo,
sempre fui muito assim,e sempre me frustrei por nunca ter conseguido ser
o centro das atenções da família.É algo tão perverso que mesmo quando
eu sou o centro das atenções,eu não me sinto o centro das atenções e me
ressinto fortemente disto.
A cena em que Tetsuo vai ao hospital
visitar sua nova namorada, que tinha se acidentado,e que
Maki,contrariando as ordens do pai,vai ao hospital também e encontra o
pai com sua madrasta se beijando e fica revoltada e se desnuda
inteiramente na frente deles e do hospital inteiro ,e Tetsuo briga com
ela, ordenando que ela se vista,e ela reage batendo nele histéricamente,
completamente descontrolada e acaba tendo de ser internada com
sedativos,é emblemática.
Na realidade ela não está com ciúmes
românticos do pai, nem quer fazer amor com ele-ela quer isto sim que ele
olhe para ela como ela é, a aceite como ela é,notar que ela existe na
vida dele, e quer que a atenção dele seja só para ela, como ocorria com
Nami,a bem da verdade ela procura sempre outra Nami, que na verdade não
existe,esta só existe dentro da própria Maki.
Quando Maki conhece seu namorado Hideo,ela encontra nele seu instrumento
de emancipação,na verdade uma ilusão,ela se apega as pessoas com
facilidade e é sempre dependente emocionalmente delas.
Hideo não teve
perdas, como Maki, mas tem um pai déspota absoluto e dominador, a mãe é
ausente,nem aparece na estória.Ele é sempre amparado pela irmã mais
velha, que tem uma paixão platônica e um desejo sexual secreto por ele,
mas demora muito a se manifestar.
Hideo é um garoto tão isolado, quieto, envergonhado,mas não é apenas sentimento, como Maki, ele é muito inteligente e estudioso.
Ele
se apaixona por Maki, mas não tem coragem de se declarar.A irmã adotiva
de Maki, Kuome e sua namorada (ela é lésbica)se ocupam de unir o jovem
casalzinho.Isto leva muito tempo, mas enfim Maki e Hideo namoram.Apesar
de tantas afinidades,o namoro é conturbado e tempestuoso,principalmente,
por um lado, pelo ciúmes doentio e a possessividade obstinada de Maki,e
por outro a apatia de Hideo.
Hideo, apesar de tão tímido e auto
reprimido, esconde(como Maki) um enorme libido.O primeiro relacionamento
sexual deles é meio acidental, mas marcante.Depois de um forte choque
incial, Maki passa a gostar daquilo e libera todo o seu libido
reprimido.Ela ainda não Sabe, mas nesta relação ela tinha engravidado.
Mas se a insociabilidade é um traço comum aos quatro personagens,esta é diferente entre cada um deles.
Maki
teve sua sociabilidade tolhida e proibida por uma “protetora”
obcecadamente possessiva e que tinha uma necessidade(e um
prazer)intrínseca de tornar as pessoas dependentes emocionalmente
dela,dando um falso amor em que Maki, em sua ingenuidade, acreditou, por
isto sua adoração por ela,e também por isto, o sofrimento tão intenso
quando de sua perda.
Já Hideo era um eterno oprimido.E auto- reprimido,e aí se encontram
semelhanças com Maki, em sua busca desesperada pela aprovação das
pessoas.Ele precisava, como ela, se sentir aprovado pelas pessoas.Ainda
assim, ele não tinha tanto drama no lidar com a rejeição como Maki
tinha.Hideo estava acostumado a ser rejeitado, e via aquilo como uma
inevitabilidade,talvez um mecanismo de auto- defesa para não sentir a dor
da rejeição.
Já Maki não conseguia lidar com a rejeição:na primeira
fase da sua vida, antes do sexo, a rejeição para ela era a própria
morte, se ela se sentisse rejeitada, seu mundo desmoronava e ela chorava
descontrolada. Na segunda fase,ela se revoltava e destruía tudo a sua volta,não aceitava a rejeição como não aceitava a realidade.
Na mente de Maki, rejeição era igual a realidade,o que por sua vez era igual a ódio pela realidade. Ao ser rejeitada, ela se sentia rejeitada não apenas pela pessoa, mas pelo mundo!
Por
isto existia um grande vazio existencial em sua vida,o propósito de sua
vida nunca estava nela,mas nos outros.Um enorme dilema povoava sua
mente por toda a vida dela:o intenso paradoxo entre a profunda
necessidade de ser protegida por alguém ,se sentir querida e amada,ser o
centro das atenções, e ao mesmo tempo sua abissal revolta contra a
superproteção e a condescendência, que a humilhavam constantemente,que
lhe doíam muito lembrar e enfrentar.Este dilema nunca teve solução,
talvez pela própria natureza deste dilema:sua insolubilidade.
É algo
que também marcou muito a minha vida e ainda marca, mas entre mim e
Maki uma diferença salta aos olhos:esta necessidade de ser o centro das
atenções ,de me sentir amado e querido é diferente de ser emocionalmente
dependente,de modo que me auto afirmar, buscar aprovação, ser o centro
das atenções é uma coisa,rejeitar a dependência emocional ,a
superproteção e a condenscendência é outra bem diferente.
A revolta de Maki é sem causa,ela não tem idéia do que é ser
independente e tomar suas próprias decisões,ela ainda não se deu conta
não apenas de que o mundo existe, mas de que o mundo não existe em
função dela,e de que é tudo muito mais o contrário.Alguma coisa falta
para ela, alguma falta nela,e o que falta nela é auto- consciência-sim,
por que a própria falta de amor por ela própria é uma prova de falta de
falta de consciência de si mesma.Maki é uma personagem fascinante porque
falta nela algo de muito humano em todos nós,é uma pessoa que quando se
olha no espelho, é incapaz de ver seu próprio reflexo,o que ela vê é a
pessoa protetora,e sem esta, sua vida simplesmente não tem sentido. É
como o cão diante do espelho, que late para este, quando se vê, porque
para ele tem outro cão do outro lado do espelho,não ele mesmo.
E isto
causa um vazio existencial absoluto e insolúvel na mente e na vida
dela, que jamais irá se preencher, mas que ,como Dom Quixote e seus
moinhos ela busca desesperadamente preencher,mas incapaz de distinguir a
realidade da fantasia que faz de si mesma,não consegue, e não consegue
porque não percebe que seu foco está extremamente errado:não está nos
outros,mas nela mesma!
Não seria isto por acaso extraordináriamente ...Humano?
Cristiano Camargo
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