Tanta insolência começava a me irritar:
-Agora chega, moleque! Vou te levar daqui agora! Você sabe quais
as conseqüências dos seus atos?
-Três dias na solitária, lei 1248954/65,parágrafo centésimo,inciso
864,artigo994.E daí? Ah, 100169, me faça um favor, pegue aquele livro, o quarto
de baixo para cima e décimo da esquerda para a direita, por favor.
A naturalidade dele era revoltante.Ele me pegou tão de surpresa
que já estava estendendo meu braço ‘a prateleira e procurando o tal livro
quando me dei por mim.
Agora sim eu estava nervoso!Acho que foi a primeira vez na vida
que eu ficava nervoso!No Presídio as pessoas simplesmente não expressavam
sentimentos, estavam sérias o tempo todo.
-Cheeega! Vamos embora daqui, já!
-E´expressamente proibido a um guarda usar de violência contra uma
criança, lei 84927/88, parágrafo primeiro, inciso oitavo.Fique quieto que você
esta atrapalhando minha leitura.Já leu os três mosqueteiros?
Eu estava pasmo. 133144 tinha toda a razão, e repentinamente
fiquei de mãos atadas! Mas eu estava desesperado para sair dali, pois se algum
guarda ou autoridade me visse ali dentro,a solitária estaria esperando por mim!
-Por favor, vamos embora, menino, você não pode ficar aqui !
-Nem você.Então você agora e´meu cúmplice. Sente-se e leia aqui
comigo.Ah, você ainda não respondeu minha pergunta, seu guarda.
Nunca em minha vida tinha encontrado alguém assim, nem tinha estado
em uma situação destas.133144 era de uma convicção e de uma autoconfiança tais
que construíam diante da minha mente uma muralha intransponível.
Eu simplesmente não tinha mais argumentos a meu favor,ele parecia
conseguir manobrar meu raciocínio do jeito que bem entendesse ate´me obrigar a
concordar com ele!Tão jovem assim, e tão inteligente...totalmente fora dos
padrões!
Eu tinha vivido dentro dos padrões a vida toda, e estes padrões
bem estabelecidos e regrados me eram confortáveis, eu me sentia feliz com
eles, mas agora já não me sentia assim...133144 me fazia sentir que os padrões já
não mais bastavam, e que havia alguma coisa além deles, so´que eu não conseguia
ter idéia do que fosse, mas eu sentia que ele sabia muito bem o que seria!
Então, imerso nestes pensamentos, me surpreendi sentado ao lado do
menino, com um livro a minha frente!
Eu nasci e vivi minha vida toda no Presídio, e so´o que eu
conhecia eram as pessoas, sempre iguais, com os mesmos comportamentos
padronizados, corredores, portas, grades, cadeados, chaves,documentos a serem
preenchidos, e a historia dos três mosqueteiros me parecia um enigma insolúvel:
nunca tinha visto aquelas roupas, aqueles nomes que me soavam tão estranhos,o
ano de 1625 me parecia totalmente fora de contexto, pois eu nem sabia em que
ano estava vivendo, pois todos os anos se passavam iguais no Presídio. E aquela
ilustração daquele animal tão estranho, que 133144 dizia ser um cavalo?
Eu não tinha idéia de que existissem outros animais além do
homem.Aquela historia enfim me parecia tão alienígena, tão incompreensível, que
fiquei com dor de cabeça!Tentei discutir estas coisas com o menino, que me
respondeu:
-Nossa, como você e´ limitado!
Aquelas palavras me calaram fundo.Tanto que, quando o menino
finalmente resolveu sair da Biblioteca,depois que eu o entreguei de volta aos
pais, fiquei o dia todo pensativo.
Passei então a escoltar 133144 secretamente ate´a biblioteca,
todos os dias, onde ele lia sem parar, e , como ele notou que eu não conseguia
entender nada do que tentasse ler,ele passou a me dar revistas ilustradas, onde
eu via com curiosidade as figuras de coisas, animais, paisagens, etc, que eu
nunca tinha visto na vida, e não tinha idéia que existissem.
O tempo foi passando e agora 133144 já contava com dez anos de idade.
A passagem dele pela escola do Presídio foi tumultuada: ele não
parava quieto,tinha aprendido a desenhar, e desenhava coisas incompreensíveis
para todos os outros alunos, e , embora ele sempre tirasse as melhores notas
nas matérias que gostava, as professoras em geral não gostavam dele porque ele
nunca resolvia os exercícios da maneira padrão, mas sempre chegava aos mesmos e
corretos resultados.Ele inventava mil maneiras diferentes de solucionar as
coisas, e isto incomodava muito a todos. Logo se tornou alvo de troças e
chacotas dos colegas, e pior, alvo de brutalidades e brigas.Covardemente, as
crianças se juntavam para ministrar-lhe surras.O impressionante e´que mesmo
machucado e apanhando, e ele não era dos mais fisicamente fortes,ele não se rendia jamais!
Comumente eu era chamado para apartar as brigas, e 133144 vinha me abraçar, buscando socorro em mim.
Eu o protegia, e espantava os outros meninos.
Numa destas ocasiões, sentado no chão depois de ter apanhado dos
colegas, de olhos rasos, mas fazendo um visível esforço, na verdade um esforço
monstruoso para não chorar,com os braços abraçando as pernas, cabisbaixo, ele
se dirigiu para mim e me perguntou:
-Voce já leu “O Pássaro pintado”?
-Não, este eu ainda não li.Respondi.
-Um dia um menino pintou um pássaro e o soltou no meio de um
bando.Os outros pássaros do bando não o
reconheceram como um membro do bando.Foram para cima dele e o mataram a
bicadas...
(Por continuar)
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