terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O Presídio- Episódio 3



Tanta insolência começava a me irritar:
-Agora chega, moleque! Vou te levar daqui agora! Você sabe quais as conseqüências dos seus atos?
-Três dias na solitária, lei 1248954/65,parágrafo centésimo,inciso 864,artigo994.E daí? Ah, 100169, me faça um favor, pegue aquele livro, o quarto de baixo para cima e décimo da esquerda para a direita, por favor.
A naturalidade dele era revoltante.Ele me pegou tão de surpresa que já estava estendendo meu braço ‘a prateleira e procurando o tal livro quando me dei por mim.
Agora sim eu estava nervoso!Acho que foi a primeira vez na vida que eu ficava nervoso!No Presídio as pessoas simplesmente não expressavam sentimentos, estavam sérias o tempo todo.
-Cheeega! Vamos embora daqui, já!
-E´expressamente proibido a um guarda usar de violência contra uma criança, lei 84927/88, parágrafo primeiro, inciso oitavo.Fique quieto que você esta atrapalhando minha leitura.Já leu os três mosqueteiros?
Eu estava pasmo. 133144 tinha toda a razão, e repentinamente fiquei de mãos atadas! Mas eu estava desesperado para sair dali, pois se algum guarda ou autoridade me visse ali dentro,a solitária estaria esperando por mim!
-Por favor, vamos embora, menino, você não pode ficar aqui !
-Nem você.Então você agora e´meu cúmplice. Sente-se e leia aqui comigo.Ah, você ainda não respondeu minha pergunta, seu guarda.
Nunca em minha vida tinha encontrado alguém assim, nem tinha estado em uma situação destas.133144 era de uma convicção e de uma autoconfiança tais que construíam diante da minha mente uma muralha intransponível.
Eu simplesmente não tinha mais argumentos a meu favor,ele parecia conseguir manobrar meu raciocínio do jeito que bem entendesse ate´me obrigar a concordar com ele!Tão jovem assim, e tão inteligente...totalmente fora dos padrões!
Eu tinha vivido dentro dos padrões a vida toda, e estes padrões bem estabelecidos e regrados me eram confortáveis, eu me sentia feliz com eles, mas agora já não me sentia assim...133144 me fazia sentir que os padrões já não mais bastavam, e que havia alguma coisa além deles, so´que eu não conseguia ter idéia do que fosse, mas eu sentia que ele sabia muito bem o que seria!
Então, imerso nestes pensamentos, me surpreendi sentado ao lado do menino, com um livro a minha frente!
Eu nasci e vivi minha vida toda no Presídio, e so´o que eu conhecia eram as pessoas, sempre iguais, com os mesmos comportamentos padronizados, corredores, portas, grades, cadeados, chaves,documentos a serem preenchidos, e a historia dos três mosqueteiros me parecia um enigma insolúvel: nunca tinha visto aquelas roupas, aqueles nomes que me soavam tão estranhos,o ano de 1625 me parecia totalmente fora de contexto, pois eu nem sabia em que ano estava vivendo, pois todos os anos se passavam iguais no Presídio. E aquela ilustração daquele animal tão estranho, que 133144 dizia ser um cavalo?
Eu não tinha idéia de que existissem outros animais além do homem.Aquela historia enfim me parecia tão alienígena, tão incompreensível, que fiquei com dor de cabeça!Tentei discutir estas coisas com o menino, que me respondeu:
-Nossa, como você e´ limitado!
Aquelas palavras me calaram fundo.Tanto que, quando o menino finalmente resolveu sair da Biblioteca,depois que eu o entreguei de volta aos pais, fiquei o dia todo pensativo.
Passei então a escoltar 133144 secretamente ate´a biblioteca, todos os dias, onde ele lia sem parar, e , como ele notou que eu não conseguia entender nada do que tentasse ler,ele passou a me dar revistas ilustradas, onde eu via com curiosidade as figuras de coisas, animais, paisagens, etc, que eu nunca tinha visto na vida, e não tinha idéia que existissem.
O tempo foi passando e agora 133144 já contava com dez anos de idade.
A passagem dele pela escola do Presídio foi tumultuada: ele não parava quieto,tinha aprendido a desenhar, e desenhava coisas incompreensíveis para todos os outros alunos, e , embora ele sempre tirasse as melhores notas nas matérias que gostava, as professoras em geral não gostavam dele porque ele nunca resolvia os exercícios da maneira padrão, mas sempre chegava aos mesmos e corretos resultados.Ele inventava mil maneiras diferentes de solucionar as coisas, e isto incomodava muito a todos. Logo se tornou alvo de troças e chacotas dos colegas, e pior, alvo de brutalidades e brigas.Covardemente, as crianças se juntavam para ministrar-lhe surras.O impressionante e´que mesmo machucado e apanhando, e ele não era dos mais fisicamente  fortes,ele não se rendia jamais!
Comumente eu era chamado para apartar as brigas, e 133144  vinha me abraçar, buscando socorro em mim.
Eu o protegia, e espantava os outros meninos.
Numa destas ocasiões, sentado no chão depois de ter apanhado dos colegas, de olhos rasos, mas fazendo um visível esforço, na verdade um esforço monstruoso para não chorar,com os braços abraçando as pernas, cabisbaixo, ele se dirigiu para mim e me perguntou:
-Voce já leu “O Pássaro pintado”?
-Não, este eu ainda não li.Respondi.
-Um dia um menino pintou um pássaro e o soltou no meio de um bando.Os outros pássaros  do bando não o reconheceram como um membro do bando.Foram para cima dele e o mataram a bicadas...
(Por continuar)

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