quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Conto: Estática de Viver-Parte 1



A estátua está ali, no meio da praça pública, ali parada. Ali, parada, inútil, sem fazer nada.Ela é bela, é arte, mas ninguém repara.A estátua só serve para ser ignorada, e para que os passarinhos e cães façam nela suas necessidades biológicas, colecionar e acumular a poeira , sujeira e detritos do mundo.
As pessoas passam e nem olham, o mundo passa, o tempo passa, e a estátua é a única fica ali inerte, parada, paralisada. Ao contrario da realidade que a cerca,e da qual irônica e talvez até hipocritamente ela faz parte, ela não tem direito a posses, carros,sucesso, reconhecimento,nada.
Por quê?Porque ela tem uma limitação: ela é uma estátua e deve se contentar com isto e procurar se aceitar como estátua e tentar ser feliz assim, e ela nada pode fazer, ela é uma estátua e ainda que ela tivesse vontade de fazer alguma coisa, não o poderia, pois ela tem esta limitação, é uma estátua, a realidade é esta e nada que ela, se pudesse fazer alguma coisa, ou que alguém fizesse, poderia mudar isto. Ela é uma estátua e acabou, a realidade é cruel, mas a dura realidade é esta.  Na realidade estátuas não se mexem, simplesmente ficam paradas. E só, só isto.
Não tem direito a sonhos, só o dever de aceitar a realidade,dura, estática ,pesada como...uma estátua !
Este era o pensamento do senhor barbudo e cheio de rugas que varria o chão junto à estátua,enquanto a contemplava.Ele a vira ser instalada, inaugurada e ficara a seu cargo, sua responsabilidade, cuidar do monumento em forma humana feito de pedra.Que tipo de pedra, ninguém, nem ele mesmo sabia.
Ele se afastou e foi para outro canto da praça.
E ali jazia a estátua,ignorada e anônima, ali parada em meio ao burburinho da praça.
Mas,havia algo estranho, algo diferente naquela estátua, que nem mesmo aquele senhor que limpava os velhos óculos ao beber no bebedouro do outro lado da praça e que cuidava daquele pedaço de rocha esculpida sabe-se lá por quem,sabia.
Havia alguma coisa dentro da estátua. Algo vivo, pensante,quem sabe uma alma,seja o que fosse estava trancada nos grilhões das entranhas de pedra estática,humana apenas na forma,mineral domado por mãos e mente humana.
Aquilo, o que quer que fosse, nunca se manifestara.Mas na verdade a estátua observava o mundo a sua volta, ainda que não tivesse olhos, ela sentia, ouvia,e o que era mais intrigante,sonhava!
Com o que poderia sonhar uma estátua?
A principio, nem deveria sonhar, deveria ser apenas mais um objeto inerte, inanimado.
Inerte ela certamente o era.Mas não aquilo que estava enterrada fundo em meio à massa mineral.Ali, embora petrificado, estava algo misterioso,que tinha sentimentos, opiniões, que exasperadamente queria se expressar sem ter como, nem para quem.
Ela conhecia muito bem aquele senhor barbudo, em seu avental branco que mais pareceria um jaleco, se não estivesse todo roto e amarrotado .Para a estátua, este senhor tinha um nome: O Destruidor de Sonhos!
O porquê deste nome já será revelado muito em breve.
Agora o idoso e encurvado senhor estava voltando e ele sentiu algo diferente, que ele não sabia explicar sequer para si mesmo o que era.Ele olhou mais uma vez para a estátua, e era notório que ele estava visivelmente incomodado.
Olhando para todos os lados para ver se não havia ninguém por perto,ele dirigiu a palavra a estátua:
-Pare com isto !Pare com isto agora mesmo!
Só o canto dos passarinhos e o barulho dos carros ao longe soaram como resposta.
Irritado,o velho encurvou-se a sua carriola toda enferrujada, que ele levava para onde ia, e sacou uma pesada e surrada marreta que sempre levava no carrinho de mão, e a brandiu na mão trêmula pela idade, esbravejando para a estátua:
-Você está sonhando de novo ! Eu já te falei não sei quantas vezes, estátuas não sonham, não pensam, não fazem nada !Demônio de pedra, isto é blasfêmia, sabia?
A estátua, como não podia deixar de ser,estava ali, parada, estática.Mas por dentro,seu silencio abafava um grito desesperado, uma ânsia por liberdade, uma indignação pelo que julgava ser a suprema crueldade daquele monstro odioso que infernizava sua existência.Ela viajava em delírios, lembrando-se das crianças brincando em torno dela, dos casais de namorados que se beijavam no banco ali em frente,invejava até mesmo a liberdade das pombas que aquele ser odioso que a vigiava, alimentava com milho.
“-Envenenado, por decerto!” Era o pensamento que lhe ocorria nestas horas.Aquele ser dentro da estátua,de tal modo embebido no mineral, algo que como se estivesse fossilizado, mas vivo,já não se dissociava mais da rocha,ele e a pedra eram um só elemento, e ele queria a liberdade, seu maior sonho era escapar daquele corpo inerte e inanimado,pesado,escuro,estático, desesperadamente estático,e ganhar a liberdade de ter um corpo humano de verdade, vivo, e por vezes sonhava ainda mais alto, namorar, casar, ter filhos.A estatua queria ser pai...
Mas ao contemplar o olhar penetrantemente severo daqueles velhos olhos cinzentos,de autoridade quase nazista,que mais pareciam cuspir fogo ao centrarem-se nos olhos inertes de pedra da estátua, e desfiar seus impropérios e ladainhas intermináveis,a estátua via seus sonhos serem destruídos pelos bombardeios de realidade que a estátua estava cansada de conhecer.
Mas não tinha como responder, não tinha como se defender,e gritos que mais pareciam uivos lancinantes queriam ecoar dentro da garganta e do peito maciços da estátua, mas não saiam.Se perdiam em rocha sólida.Por isto aquele senhor barbudo era o Destruidor de Sonhos.Não bastavam as limitações da própria figura petrificada,o sádico velhinho tinha que lhe impor suas próprias barreiras e  a lembrar das que já existiam e que a estátua estava farta de ter conhecimento, mas queria poder esquecer.
Se não podia realizar seus sonhos, ao menos queria ter a esperança de um dia poder realizá-los, por mais ilusória que fosse.Eis que a desilusão de ter uma esperança frustrada machuca menos à alma do que sequer ter podido tentar realizar o sonho agora morto e sepultado.Por quê?
Porque, para a consciência, ao menos se tentou e o fato de tentar devolve a esperança de que sempre se pode tentar novamente, e é uma desilusão de curta duração, logo substituída por outro sonho.Mas não poder sequer tentar é cruel, pois a consciência sempre dirá que podíamos ter tentado, deveríamos ter tentado, e ficamos a mercê de uma auto condenação eterna, angustia de não saber se, caso tivesse sido tentada, teria sido conseguida ou não.
Ele sabia que o que o fazia se sentir viva e sentir que existia, e o motivava a ver mais um por ou nascer do sol eram seus sonhos, suas esperanças.Por isto, a cada vez que o Destruidor de sonhos destroçava suas fantasias, a estátua logo construía outros.

Por falar no velhinho, enquanto a pedra continuava em suas reflexões, ele continuava a fazer seu discurso inflamado como seus olhos injetados de ódio,brandindo e ameaçando bater com a marreta na estátua.
Mas nunca o fizera, pois era sua responsabilidade perante a sociedade cuidar da estátua, não destruí-la.Mas o feroz Destruidor de Sonhos não se conformava, e a cada vez que sentia que a estátua de algum modo que ele não sabia explicar, sonhava,ele ficava furioso e tinha vontade genuína de martelá-la com a pesada marreta, para “dar-lhe uma lição”.
Uma chuva torrencial se iniciou, e o velho disse para a estátua:
“Desta vez você escapou.Mas se eu souber que você andou sonhando ou mesmo pensando de novo, ainda que só um pouquinho, eu vou usar isto em você da próxima vez!Ah, danado,da próxima vez você não me escapa!”
Como se a infeliz estátua pudesse sair do lugar e fugir.O próprio Destruidor de Sonhos por vezes saia da realidade e não se dava conta da situação insana que vivia.
Ele foi embora, e a chuva engrossou.Logo caiu a noite, e a estátua, em meio ao temporal na praça deserta se sentia mais solitária do que nunca.Sempre fora solitária, claro, a presença do seu algoz nunca contava, mas nunca antes a solidão lhe pesara tanto sobre seus ombros de pedra.Como a chuva, também a estátua chorava, chorava por dentro,sem poder se mover, em silencio por sua voz estar tristemente encarcerada naquele túmulo pétreo,sonhando que existisse alguém carinhosa que pudesse consolá-la.
Enfim, já perto do raiar do dia, a estátua dormiu.
Quando acordou, sentiu algo estranho.Um contato, um contato de pele, pele humana, delicada, quente,e úmida.Pensou que deveria estar enganada, será que ainda estava dormindo, sonhando ou estava acordada?
A estátua via através de seu olhos de pedra, o que sentia era o contato de uma garotinha de seis anos que tinha subido no pedestal e abraçado o pequeno monumento petrificado.
“-Minha mãe é uma bobona, uma chata !Eu odeio a ela, odeio !Mas eu gosto de você, pelo menos você não fala,e é bonito !”
Bonito !Ele era bonito ! Alguém tinha finalmente reparado na estátua, e, melhor ainda, além de admirá-la, disse palavras carinhosas a ela...
Ah, como seria bom poder abraçar a menina de volta e dizer a ela que também ela era bonita e que também gostava dela, dizer a ela o quanto calava fundo em sua alma aquele gesto tão precioso, tão precioso, porque tão espontâneo, aquelas palavrinhas nunca mais sairiam de sua mente: “-Você é bonito!”, “-Eu gosto de você !”...
A vontade avassaladora da estátua de dizer a menininha o quanto aquelas palavras e gestos inesquecíveis eram importantes pela ele,eram como a realização de um sonho, e de agora em diante, aquele seria seu sonho mais especial, mais acalentado, queria ser o pai daquela menininha tão especial, o primeiro e singelo ser humano que o tratou com humanidade, amor, carinho, ternura...
Claro que em sua intensidade de sentimentos, a estátua já não distinguia mais o que era real do que era fantasioso, mas de qualquer modo, pela primeira vez em sua existência,ele se sentia feliz,muito,muito feliz.
Ele queria que aquela menininha fosse sua filha muito especial, para sempre.
Seus devaneios no entanto foram brutalmente interrompidos pela voz esganiçada do Destruidor de Sonhos:

(por continuar)

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