Era
chegada a época das chuvas nas planícies.
Pequeninos
pés tamborilavam as poças d´agua, correndo com espontaneidade.O vento, sempre ele
carregava as gotas de água, qual lágrimas,em uma dança frenética para todos os
lados, desordenado como tudo o que e´natural.O Céu via-se rasgado pela dança
poderosa e magistral dos raios e relâmpagos, e era o céu quem parecia acumular
uma tremenda pressão sobre a terra e todos que nela habitassem, como que se
tivesse a intenção de esmaga-los.Tudo isto regido pelo rufar dos trovões que
atormentavam os ouvidos, e apregoavam o Poderio da Natureza,como que para se
afirmar perante o Homem sua superioridade sobre este.
Mas
Rikku ainda era uma criança,uma menina inocente, aos sete anos de idade, e não se
importava com nada disto.
A
expressão em seu rosto era de um profundo júbilo, uma alegria intensa, saída
diretamente daquele coraçãozinho que batia apressado, na ansiedade natural de
toda criança.Ela tinha sofrido muito com a seca, como seus pais, e agora
comemorava a volta das chuvas
encharcando-se ate á medula.
Desde
muito pequena ela já tinha se revelado de uma inteligência acima do normal,e
ela parecia ter uma sensibilidade intrínseca a sua natureza, percebendo com
facilidade cada emoção, cada estado de espírito, de maneira muito
intensa.Quando chorava, chorava como se a raça humana tivesse chegado ‘a sua
extinção, quando ficava triste se deprimia tão profundamente que se encolhia
num canto em posição fetal, absolutamente
calada, mas não sem antes passar por uma fase de choro tão intenso e
convulso que chegava a ser preocupante.
Quando ela esta alegre como agora, não
se continha em si,e entrava numa euforia tão absoluta que quase parecia estar
num transe induzido por drogas.Acima de tudo , ela se isolava em si mesma,
brincava consigo mesma,e as vezes simplesmente ignorava os pais, tão absorta
que estava em se ocupar de sua própria e poderosa imaginação.
Então
se ouviu um trovejar diferente.
Não
parecia vir do Céu, mas da própria terra, e a cada vez ficava mais próximo. Os
pais de Rikku ouviram, procuraram-na em
casa e não a acharam, ficando então extremamente preocupados.Começaram a
procura-la nas campinas, e não a achavam.Seus gritos eram freqüentemente
abafados pelo trovejar cada vez mais próximo, que se denunciava também por
ondas de água que se esparramavam pelas planicies de capim.
Enquanto
isto, Moruu, o Giganoterio, liderava sua horda pelas pastagens verdes, seguindo
as tempestades.Os Giganoterios eram animais de grande porte, que lembravam
muito Rinocerontes, mas com pernas mais compridas,zebrados de verde e
branco,cabeças menores e pescoços mais longos, e uma cauda longa que acabava se afinando como um chicote, e era
usada como tal para se defender de predadores, e tinham galhadas parecidas com
as dos Alces na cabeça.Tinham cinco metros de altura nas espáduas, embora, com
o pescoço levantado ao máximo, posição pouco usual, pudessem atingir sete
metros e meio; por dez de comprimento se contada a cauda, que usava quase a
metade deste comprimento,e pesavam cerca de oito toneladas, em media.Mas eram
muito ágeis para o seu tamanho,e conseguiam galopar a ate´quarenta quilômetros
por hora, por dias a fio.Eles procuravam por um Vale, que ficava depois das
montanhas além daquelas planícies.Todos eram herbívoros, mas eram
especializados, gostavam de comer flores que só cresciam nos Vales, por isto,
sazonalmente migravam de Vale em Vale.
E
estavam absolutamente famintos.E Moruu sabia que tinha de achar o próximo Vale
logo, pois não podiam pastar gramíneas, pois a sílica destas era um veneno para
o metabolismo deles.
Neste ínterim, Rikku, já distante da sua casa no meio das planícies, ia de encontro
ao tropel que agora já se ouvia bem próximo.
Uma
verdadeira horda, um batalhão de feras unguladas se aproximava,eram milhares,
dezenas de milhares,e o chão tremia e chocalhava diante da pressão de milhares
de toneladas que se espremiam e se chocavam entre si.
Mas Rikku não se importava. Queria ver o
espetáculo da vida de perto, intensamente admirada, e não haviam nela nem medo
nem insegurança,só um largo sorriso da mais plena alegria.
Enfim
a horda chegou, e as bestas passavam todas muito perto dela, que sequer se
desviava, e não conseguia conter sua admiração.Uma delas, em meio ao tropel
furioso, abaixou a cabeça e apontou-lhe os chifres, olhando com segurança para
a menina extasiada.
O
olhar da menina foi penetrante,magnético,impressionante por sua profundidade e
força. Era um olhar indomável, de liderança e superioridade,impenetrável, mas
ao mesmo tempo de uma doçura e inocência tamanha, que o Giganotério levantou um
pouco sua cabeça, e a menina agarrou-se nos chifres dela, e num ágil golpe
malabaristico, subiu no lombo da fera e agarrou-se ‘a crina dela, cavalgando-a.
O
galope continuou, e as bestas prosseguiram em sua marcha em meio a tempestade,
os raios avassaladores, e os trovoes ribombantes. Então, quando estavam ao
sopé das montanhas, uma outra horda os esperava.
Era
o Exército Imperial, que via ali uma chance de abastecer-se de comida por um
bom período.Milhares de homens montados
em deinohippus,animais muito parecidos com cavalos, e de porte semelhante,mas com chifres ao
estilo de rinocerontes, e caudas musculosas e fortes, conhecidos pelo mau gênio
e péssimo humor, avançaram sobre a horda, municiados de fuzis lazer de alta
cadência de fogo e grosso calibre.
O
que se viu então foi um massacre.A confusão se fez, e o desespero tomou conta
da manada inteira.
Rikku
percebeu o que estava acontecendo mais 'a frente, e freou a besta na qual
montava, antes que fosse tarde demais.Só ela ficou parada, e todas as outras
entraram no funil mortal, e os cadáveres iam se empilhando uns em cima dos
outros.
Muitos
animais enfurecidos se atiravam contra os soldados, matando muitos destes e
muitos deinohippus também.
Enquanto
assistia ao espetáculo de sangue, em meio aos relâmpagos e trovoes, e os raios
ensandecidos, Rikku chorava de modo intenso!
Sentia
em seu coração a dor da manada, e a dor igualmente penosa da sua impotência
diante de tamanha carnificina, de tal covardia, chorava convulsamente ao ver as
lágrimas dos filhotes que perdiam os pais e depois eram mortos
impiedosamente.Chorava ao ver as dimensões da crueldade que a ambição e a estupidez
humanas podiam chegar,e pensava no que o Homem tinha se tornado.Jurou para si
mesma um dia vingar a morte daquela manada!
Mas
mesmo assim sua dor continuava, e seu choro persistia, pois vinha do fundo de
seu coração, em ondas tão poderosas quanto o poderio da insanidade humana.O que
a revoltava ainda mais é que os adultos apregoavam que sua loucura, sua
insanidade era lógica e racional, e que ela um dia deixaria de ser uma criança
para se tornar “lógica e racional,madura” como eles. Se aquela bestialidade toda,aquele massacre, aquela canificina horrenda
era ser madura, ser adulta, ela não o queria ser.A revoltava também o fato de
que ela estava envelhecendo, e que um dia ela seria adulta, mas não iria querer
se reconhecer como adulta diante de si mesma, como ela não reconhecia que a
imagem no lago era a sua própria. A imagem dela adulta não seria a dela.A
criança de sete anos deveria viver para sempre, convivendo com o adulto
corpóreo.
O
choque daquela realidade tão revoltante lhe impressionou tanto, que lhe marcou
pelo resto da vida.Ela nunca mais esqueceria aquele dia!
O
dia em que desmontou do Giganoterio, e viu nos olhos dele a tristeza de ter
sobrevivido,ter sido o último sobrevivente, de ter visto a todos que conhecia
morrerem,de ser talvez o último de sua espécie,de testemunhar a extinção de sua
própria espécie,e suas lágrimas ,comoveram a menina , e muito, ela chorou na
galhada dele,compartilhando profundamente a dor dele.
Um último olhar,e nele Rikku percebeu a gratidão da fera por ela ter salvado sua
vida,e ao mesmo tempo, a dor e tristeza da despedida.
Fera
e menina se separaram, e a chuva por fim terminou.Parecia que cada uma estava
de um lado do Arco Íris,ligados para sempre pelos laços de uma amizade eterna,
símbolo maior da dor compartilhada e piedosa, ambigüidade humana:no mesmo dia viu-se
ate´onde a crueldade humana pode chegar, e até aonde a piedade, a sensibilidade e a generosidade humanas podem chegar.
!
Enfim,a
mesma mão que bate, e´a que acaricia...
FIM
Cristiano Camargo
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