quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Conto: A Horda e a Criança



Era chegada a época das chuvas nas planícies.
Pequeninos pés tamborilavam as poças d´agua, correndo com espontaneidade.O vento, sempre ele carregava as gotas de água, qual lágrimas,em uma dança frenética para todos os lados, desordenado como tudo o que e´natural.O Céu via-se rasgado pela dança poderosa e magistral dos raios e relâmpagos, e era o céu quem parecia acumular uma tremenda pressão sobre a terra e todos que nela habitassem, como que se tivesse a intenção de esmaga-los.Tudo isto regido pelo rufar dos trovões que atormentavam os ouvidos, e apregoavam o Poderio da Natureza,como que para se afirmar perante o Homem sua superioridade sobre este.
Mas Rikku ainda era uma criança,uma menina inocente, aos sete anos de idade, e não se importava com nada disto.
A expressão em seu rosto era de um profundo júbilo, uma alegria intensa, saída diretamente daquele coraçãozinho que batia apressado, na ansiedade natural de toda criança.Ela tinha sofrido muito com a seca, como seus pais, e agora comemorava  a volta das chuvas encharcando-se ate á medula.
Desde muito pequena ela já tinha se revelado de uma inteligência acima do normal,e ela parecia ter uma sensibilidade intrínseca a sua natureza, percebendo com facilidade cada emoção, cada estado de espírito, de maneira muito intensa.Quando chorava, chorava como se a raça humana tivesse chegado ‘a sua extinção, quando ficava triste se deprimia tão profundamente que se encolhia num canto em posição fetal, absolutamente  calada, mas não sem antes passar por uma fase de choro tão intenso e convulso que chegava a ser preocupante.
Quando ela esta alegre como agora, não se continha em si,e entrava numa euforia tão absoluta que quase parecia estar num transe induzido por drogas.Acima de tudo , ela se isolava em si mesma, brincava consigo mesma,e as vezes simplesmente ignorava os pais, tão absorta que estava em se ocupar de sua própria e poderosa imaginação.
Então se ouviu um trovejar diferente.
Não parecia vir do Céu, mas da própria terra, e a cada vez ficava mais próximo. Os pais de Rikku  ouviram, procuraram-na em casa e não a acharam, ficando então extremamente preocupados.Começaram a procura-la nas campinas, e não a achavam.Seus gritos eram freqüentemente abafados pelo trovejar cada vez mais próximo, que se denunciava também por ondas de água que se esparramavam pelas planicies de capim.
Enquanto isto, Moruu, o Giganoterio, liderava sua horda pelas pastagens verdes, seguindo as tempestades.Os Giganoterios eram animais de grande porte, que lembravam muito Rinocerontes, mas com pernas mais compridas,zebrados de verde e branco,cabeças menores e pescoços mais longos, e uma cauda longa  que acabava se afinando como um chicote, e era usada como tal para se defender de predadores, e tinham galhadas parecidas com as dos Alces na cabeça.Tinham cinco metros de altura nas espáduas, embora, com o pescoço levantado ao máximo, posição pouco usual, pudessem atingir sete metros e meio; por dez de comprimento se contada a cauda, que usava quase a metade deste comprimento,e pesavam cerca de oito toneladas, em media.Mas eram muito ágeis para o seu tamanho,e conseguiam galopar a ate´quarenta quilômetros por hora, por dias a fio.Eles procuravam por um Vale, que ficava depois das montanhas além daquelas planícies.Todos eram herbívoros, mas eram especializados, gostavam de comer flores que só cresciam nos Vales, por isto, sazonalmente migravam de Vale em Vale.
E estavam absolutamente famintos.E Moruu sabia que tinha de achar o próximo Vale logo, pois não podiam pastar gramíneas, pois a sílica destas era um veneno para o metabolismo deles.
Neste ínterim, Rikku, já distante da sua casa no meio das planícies, ia de encontro ao tropel que agora já se ouvia bem próximo.
Uma verdadeira horda, um batalhão de feras unguladas se aproximava,eram milhares, dezenas de milhares,e o chão tremia e chocalhava diante da pressão de milhares de toneladas que se espremiam e se chocavam entre si.
Mas  Rikku não se importava. Queria ver o espetáculo da vida de perto, intensamente admirada, e não haviam nela nem medo nem insegurança,só um largo sorriso da mais plena alegria.
Enfim a horda chegou, e as bestas passavam todas muito perto dela, que sequer se desviava, e não conseguia conter sua admiração.Uma delas, em meio ao tropel furioso, abaixou a cabeça e apontou-lhe os chifres, olhando com segurança para a menina extasiada.
O olhar da menina foi penetrante,magnético,impressionante por sua profundidade e força. Era um olhar indomável, de liderança e superioridade,impenetrável, mas ao mesmo tempo de uma doçura e inocência tamanha, que o Giganotério levantou um pouco sua cabeça, e a menina agarrou-se nos chifres dela, e num ágil golpe malabaristico, subiu no lombo da fera e agarrou-se  ‘a crina dela, cavalgando-a.
O galope continuou, e as bestas prosseguiram em sua marcha em meio a tempestade, os raios avassaladores, e os trovoes ribombantes. Então, quando estavam ao sopé das montanhas, uma outra horda os esperava.
Era o Exército Imperial, que via ali uma chance de abastecer-se de comida por um bom período.Milhares de homens   montados em deinohippus,animais muito parecidos com cavalos,  e de porte semelhante,mas com chifres ao estilo de rinocerontes, e caudas musculosas e fortes, conhecidos pelo mau gênio e péssimo humor, avançaram sobre a horda, municiados de fuzis lazer de alta cadência de fogo e grosso calibre.
O que se viu então foi um massacre.A confusão se fez, e o desespero tomou conta da manada inteira.
Rikku percebeu o que estava acontecendo mais 'a frente, e freou a besta na qual montava, antes que fosse tarde demais.Só ela ficou parada, e todas as outras entraram no funil mortal, e os cadáveres iam se empilhando uns em cima dos outros.
Muitos animais enfurecidos se atiravam contra os soldados, matando muitos destes e muitos deinohippus também.
Enquanto assistia ao espetáculo de sangue, em meio aos relâmpagos e trovoes, e os raios ensandecidos, Rikku chorava de modo intenso!
Sentia em seu coração a dor da manada, e a dor igualmente penosa da sua impotência diante de tamanha carnificina, de tal covardia, chorava convulsamente ao ver as lágrimas dos filhotes que perdiam os pais e depois eram mortos impiedosamente.Chorava ao ver as dimensões da crueldade que a ambição e a estupidez humanas podiam chegar,e pensava no que o Homem tinha se tornado.Jurou para si mesma um dia vingar a morte daquela manada!
Mas mesmo assim sua dor continuava, e seu choro persistia, pois vinha do fundo de seu coração, em ondas tão poderosas quanto o poderio da insanidade humana.O que a revoltava ainda mais é que os adultos apregoavam que sua loucura, sua insanidade era lógica e racional, e que ela um dia deixaria de ser uma criança para se tornar “lógica e racional,madura” como eles. Se aquela bestialidade toda,aquele massacre, aquela canificina horrenda  era ser madura, ser adulta, ela não o queria ser.A revoltava também o fato de que ela estava envelhecendo, e que um dia ela seria adulta, mas não iria querer se reconhecer como adulta diante de si mesma, como ela não reconhecia que a imagem no lago era a sua própria. A imagem dela adulta não seria a dela.A criança de sete anos deveria viver para sempre, convivendo com o adulto corpóreo.
O choque daquela realidade tão revoltante lhe impressionou tanto, que lhe marcou pelo resto da vida.Ela nunca mais esqueceria aquele dia!
O dia em que desmontou do Giganoterio, e viu nos olhos dele a tristeza de ter sobrevivido,ter sido o último sobrevivente, de ter visto a todos que conhecia morrerem,de ser talvez o último de sua espécie,de testemunhar a extinção de sua própria espécie,e suas lágrimas ,comoveram a menina , e muito, ela chorou na galhada dele,compartilhando profundamente a dor dele.
Um último olhar,e nele Rikku percebeu a gratidão da fera por ela ter salvado sua vida,e ao mesmo tempo, a dor e tristeza da despedida.
Fera e menina se separaram, e a chuva por fim terminou.Parecia que cada uma estava de um lado do Arco Íris,ligados para sempre pelos laços de uma amizade eterna, símbolo maior da dor compartilhada e piedosa, ambigüidade humana:no mesmo dia viu-se ate´onde a crueldade humana pode chegar, e até aonde a  piedade, a sensibilidade  e a  generosidade humanas podem chegar.
!
Enfim,a mesma mão que bate, e´a que acaricia...

FIM

Cristiano Camargo

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