...
“-Desce daí, menina ! Seus pais estão te
procurando feito doidos !Menina danada, se fosse minha neta, ia ver só!”
Os pais da menina chegaram e o pai retirou a
ela da estátua.
A criança ingenuamente se despediu:
“-Tchau ,estátua !”
-“Vamos filha, não tem cabimento você ficar
agarrada nesta estátua velha e feia, toda suja ! Olha só, você está toda suja !
Quando você chegar em casa você vai apanhar da mamãe !”
Disse a mãe da menina, com a criança no
colo, e a família foi embora.
Por sorte, o Destruidor de Sonhos foi embora
também.
Mais uma desilusão.Mais uma para sua vasta
coleção. Embora triste e sozinha de novo, a estátua ficava rememorando os
momentos daquela manhã inesquecível,e sonhando com a menininha, sonhos entrecortado
pelos pesadelos, os horrores da coitada da criança apanhando dos pais, e ficava
mesmo imaginando o cruel Destruidor de Sonhos desabando sua pesada marreta na
cabeça da coitadinha,horror, horror...
Naquela tarde ele ainda sentia o calor da
pele da menina em sua pedra, e parecia que uma onda de calor o aquecia por
dentro,algo que nunca sentira antes.
Mas aquele não seria o único encontro com a
garotinha, que era muito solitária e vivia um doloroso processo de separação e
brigas dos pais, e todo fim de semana, insistia para passear no parque, e uma
vez lá, escapava das mãos da mãe e ia direto para a estátua e tinha sua
conversa imaginária com ela.
Contava toda a sua insegurança , todos seus
temores, todos os seus sonhos e a estátua, ainda que sem a menina saber,
escutava a tudo atentamente.Quando menos esperava, passou a “sentir” o
pensamento da estátua como ocorria com o Destruidor de Sonhos:não a escutava,
não era como telepatia também, não sabia o que a estátua lhe dizia, mas sentia
que ela como que, de alguma forma, queria lhe dizer alguma coisa e que eram
coisas boas.No começo, a menina se assustou, mas depois se acostumou, e sempre
que podia, abraçava a estátua com carinho,e esta, por dentro , se derretia, se
comovia e não se conformava de não poder fazer nada.
Invariavelmente o Destruidor de Sonhos
achava a menina e lá vinha a mãe dela de novo e a levava embora em meio a
broncas, para a tristeza e decepção da estátua, impotente.
E a sua impotência e imobilidade lhe doíam,
tanto, tanto...
Mas quanto mais contato tinha com a menina,
mais se sentia quente e reconfortado,uma energia que parecia fazê-lo viver mais
intensamente dentro de sua cela pétrea.
Até que um dia o Destruidor de Sonhos veio
torrar-lhe a paciência mais uma vez com suas ladainhas, e desta vez, falando
mal da menininha que a estátua amava como filha.
Desta vez a raiva incendiou-se em ondas pela
pedra, que sempre fora mais ou menos lisa,e agora ficou rugosa !
A estátua percebeu que agora podia controlar
a rugosidade de sua pedra de acordo com a sua vontade, e quando o olhar
injetado do Destruidor mirou nos “olhos” da estátua, esta lhe devolveu uma
sensação terrível, e quando o velho viu, abriu-se uma ferida em seu braço
direito.
Agora a estátua podia defender-se!
Mas ela não estava preparada para uma fúria
que podia ser ainda pior que a sua, e o Destruidor ensandecido e fora de si
berrava a plenos pulmões,golpeando-a com toda a força com sua marreta:
“Pára ! Pára de sonhar com esta menininha
idiota !Você não existe ! Você não sonha ! Você é limitada, você é uma estátua,
pombas ! Aceite a realidade que você é uma estátua,droga ! Será que você não
entende?Quantas vezes vou ter de te falar que não deve fazer nada, não deve
pensar, não deve sonhar, só deve ficar morta ! Morta para sempre, entendeu ?”
Para a surpresa do velho, no entanto, quanto
mais ele martelava, mais a rocha se endurecia, e mais dura era a resposta da
estátua também.Ate que, depois de tanto escândalo, e exausto pelo cansaço, uma
multidão o agarrou e o levou dali.Provavelmente acharam que ele tinha enlouquecido!
Foi então que de fato, o Destruidor de
Sonhos desapareceu por uns tempos.
Num belo domingo, a menininha saiu do carro
da mãe,no estacionamento próximo a estátua, e atravessou a rua correndo,vindo
direto em direção a sua companheira de pedra.
A mãe no entanto, soltou um grito.Uma
brecada pânica se ouviu!
A criança estava caída no chão. Estava
morta, e seu sangue escorria pelo meio fio...
Uma multidão apareceu do nada, ambulâncias,
sirenes, nada adiantou.
A estátua tudo viu e por dentro ela chorava.
A dor penetrava lancinante por suas entranhas petrificadas e parecia que ela iria
rachar e se esfarelar toda!Um grito angustiante tentava desesperadamente sair e
não conseguia...
Uma chuvinha fina começou e logo parou e o
carro do instituto medico legal levou o corpo inerte da criança.Parecia que
levava consigo os sonhos e esperanças da estátua com ele.
Duas trincas apareceram, bem debaixo dos
olhos da estátua, e dela saía à água acumulada pela chuva. A estátua chorava !
Pela primeira vez, a estátua chorava de verdade,
colocando sua dor e seu desespero, sua desesperança, sua magoa e desilusão para
fora, para que pudessem ver !
Alguém viu, e logo uma multidão se formou
diante da estátua, e não pouparam elogios a ela.
Agora ela era famosa, e todos a admiravam, o
que era a realização de outro sonho, mais uma conquista, mas se por um lado
isto deixava a estátua feliz, por outro as saudades ensandecidas da menininha,
o dó do destino cruel que a levou em tão tenra idade,a frustração e dor da
impotência de não ter podido fazer nada para salvá-la a continuava a fazê-la
verter lagrimas infindáveis.Mesmo com tanta gente em volta dela, a solidão e o
vazio na alma que sentia eram insuportáveis, maiores do que nunca antes em sua
existência.
Logo o “choro” da estatua deixou de ser
novidade e ela voltou a ser ignorada como sempre.
No dia seguinte ao esvaziamento do interesse
do público na estátua, logo chegava o Destruidor de Sonhos com sua carriola
,rangendo desde o outro lado da praça.Dentro dela, a marreta de sempre.
“-Ah, ai está você! Você viu só, sua
“filhinha” queridinha morreu atropelada ! Foi bem feito para você ! Quem mandou
ficar sonhando com ela?Estátuas não sonham ! Elas não podem sonhar, e de
qualquer forma, você jamais seria pai dela , nem dela , nem de ninguém , nem de
coisa nenhuma!Isto não passa de uma fantasia absurda !Agora vê se aprende a
aceitar a realidade,que sempre será mais cruel contigo do que comigo,e não
tenta sonhar mais ok?Enfia nesta cabecinha tonta de pedra que a culpa de ela
ter sido atropelada foi sua ! Todinha sua !Afinal, ela estava indo te
encontrar, não estava?”
A pedra da estátua subitamente encrispou-se
de tanto enrugar.
A fúria da estatua agora era assassina e ela
estava enlouquecida,e o que ela “mandou” para o velho fez-lhe um vergão no braço,
reabrindo uma velha ferida.
“Ah, sua desgraçada ! Estátua desgraçada,
isto não vai ficar assim não !Agora você vai ver !”
E o Destruidor pegou sua marreta e sentou-a
nas costas da estátua, e logo mais um ferimento estava aberto no outro braço do
velho.
Começava então o duelo entre os dois.A
“troca de olhares” era monstruosa entre os dois, e logo o corpo do Destruidor
estava cheio de chagas, que sangravam abundantemente.Trincas apareciam na pedra,
mas a batalha,qual guerra, continuava, com golpes de ambos os lados.
Ate que o Destruidor aplicou um golpe com
toda a sua força, com as duas mãos e todo o seu peso, na cabeça da estátua.
A pesada e surrada marreta voou em direção
ao artefato de pedra.Na verdade escapara das mãos do Destruidor, que não mais a
controlava.
Impacto !
Um borrão viu-se zunindo na direção contrária,
e em instantes o Destruidor estava caído no chão, com a cabeça ensangüentada.
A marreta tinha ricocheteado na pedra e
acertara o crânio do Destruidor de Sonhos. Ele estava morto.
Porem a estátua estava ali. Inteira.
Inteira?
Fisicamente sim, mas aquele ser especial,
sensível, inteligente, sonhador não estava mais lá.
Agora era só mais uma estátua. Inerte,
imóvel,petrificada,impassível,parada.como todas as outras.
Nunca mais veria, ouviria,pensaria,
sonharia, sentiria.Nada.
Uma vez mortos os sonhos, mortas as
fantasias,morta a esperança, nada mais sobra.De certo modo, a estátua
conseguira a liberdade que sempre sonhara. Mas não do modo como sonhara.Também
pudera,a estátua ali parada, solitária, mais solitária do que nunca, junto ao
corpo vazio do Destruidor morto, em meio à praça, a grande cidade, ao pais, ao
mundo,agora ela era,mais do que nunca a própria personificação da Realidade.
Não há fantasia se não há ninguém para sonhá-la...
FIM
Cristiano Camargo
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