*Este é o terceiro conto da série "O Suprassumo da Quintessência"
O velho mestre e guru
Paralucius Madraglifus estava sentado sobre sua almofada em seu salão no
alto de sua Torre da Sabedoria, quieto, silencioso, com seu corpo magro e
mirrado ostentando a cabecorra baixa, olhos fechados, enigmático como sempre.
Então a porta se abriu, e seu discípulo
entrou sorrateiramente no salão. Observou pela janela o sol da manha, e
deparou-se com uma novidade: em um canto do salão havia agora um aquário,
redondo, e de generosas proporções, cheio de peixes ornamentais coloridos.
Curioso, o discípulo foi Ter com o
Mestre :
-Acorda, Mestre acorda!
O Discípulo não sabia, mas o tempo
todo olhos pequenos e penetrantes o seguiram pela sala desde que o rapaz
entrou.
Nada.
-Acorda, Mestre, vamos! Ih, destas
vez, acho que ele não esta’ meditando , nem dormindo, deve estar morto mesmo!
Coitado, deve Ter morrido sentado...também, com cento e trinta anos de idade!
Dentes se cerraram , mal contendo a
raiva.
-Será’ que se eu o acordar ele
revive? Mestre, Mestre , acorda da morte, vai!
Paralucius não agüentou mais tanta
estupidez e explodiu:
-Seu imbecil ! Estúpido! Discípulo
ignorante !Ainda não consegue distinguir quando alguém esta’ meditando,
dormindo ou morto! E o que você acha que e’ a morte? Algum tipo de sono do qual
se acorda? Ainda não aprendeu o que e’ estar morto?
-Claro que não, eu não morri ainda!
O senhor me ensina?
- Ensino, seu energúmeno, ensino In Loco! Ah, haja paciência, como será
que você chegou a ser tão ignaro deste jeito? O que e’ que eu fiz na vida para
merecer alguém tão burro?
- O senhor me ensinou tudo o que eu sei ! Tenho muito orgulho disto!
- Mas eu não consegui lhe ensinar nada, seu asno! Seu manto de falta
de inteligência crônica e’ tão espesso que ate’ hoje, depois de mais de vinte
anos tentando lhe ensinar alguma coisa, você não aprendeu nada ! E você ainda
Ter orgulho disto?
- Manto, que manto, Mestre ?Eu não estou usando manto nenhum...
- Ah, eu mato, eu esgano, eu arrebento, eu, eu...
- -Calma, Mestre.
- O que você quer afinal ?
- Eu olhei o salão e vi este aquário tão bonito. Eu queria que o
senhor me contasse sobre esta novidade.
- Este aquário, e’ parte da sua lição de hoje. Na verdade e’ o tema
de hoje.
- Disse Paralucius, acalmando-se e levantando-se , indo em direção `a
janela.
- Olhe pela janela, esta’ vendo aquele riozinho do jardim japonês?
- Mas e o aquário, Mestre? O senhor me disse que ia me ensinar sobre
o aquário!
- Esqueça este raio deste aquário idiota por enquanto! Veja se presta
atenção no que fala, eu já’ vou chegar no aquário já , já !
- Ah, então eu vou esperar o senhor chegar aqui, enquanto observo os
peixinhos...
Paralucius arrastou o estudante pela
orelha e quase o joga pela janela, furioso. Depois de tomar fôlego e se acalmar, continuou sua lição:
-Já ouviu falar da Lenda do Pescador
e do Peixe.?
-Ah, já sei ! E’ aquele lance de que
se deve ensinar o pescador a pescar ao invés de dar o peixe a ele ! Ou será’
que e’ aquela que diz que se deve
ensinar o peixe a pescar ao invés de se dar o pescador para ele? Droga, agora
já não sei mais...
Paralucius quis chorar de raiva, mas
acalmou. Tirou as mãos do rosto e continuou:
-Não me admiro com mais nada do que você
fala. Bom, vamos continuar. Não e’ nada disto.
Em um riozinho como este, havia um cardume de peixes ornamentais. Mas
quando chegava o pescador para sua pescaria, havia um dos peixes, que roubava
toda a comida dos outros. Era esperto, e conseguia roubas as iscas sem ser
fisgado. Na verdade, ele adorava o perigo, e desafiava o perigo o tempo todo.
Era o único que tinha predileção pelo sakhe que o pescador jogava antes da
pescaria, como era de costume local, pois adorava a sensação de embriaguez.
Tudo este peixinho super confiante fazia ao contrario dos outros, inclusive sua
brincadeira predileta era tentar nadar contra a corrente. Quando o pescador
passava por situações difíceis e não tinha sakhe, o peixinho ficava revoltado,
e mordiscava a cauda dos outros, e aproveitava a distração deles para roubar
comida. Era o único que ia direto ao anzol para desafiar a morte.
O clima entre ele e o cardume estava
sempre tenso.
Um dia o pescador foi ao rio com uma
intenção diferente: queria novos peixes para seu aquário.
Para o nosso peixinho em particular,
a rede de pesca era uma novidade. Depois de beber muito sakhe que o pescador
jogara na água, ele se deixou apanhar propositalmente. Outros também foram
capturados, embora tenham tentado fugir.
O pescador levou-os para seu aquário.
Nosso peixinho, entretanto, era muito convencido . Achava-se mais forte e mais
bonito do que os outros e que era mais merecedor da comida também. Assim, seu
comportamento agressivo acentuou-se. Esta agressividade para com outros peixes
acentuou-se ainda mais quando nosso peixinho se deu conta de que não havia
sakhe lá.
Ele ficava cada vez mais bonito
enquanto outros peixes iam ficando mais feios, e agora nosso peixinho já não se
contentava mais com a comida, avançava nos outros para comer-lhes as
barbatanas, e se alguém reagia agressivamente, ele ficava ainda mais agressivo,
ate’ que um dia um peixe maior deu uma surra tremenda nele, que, revoltado e
covarde, procurou compensar mordendo os mais fracos. Logo ele se viu isolado do
cardume, e todos procuravam fugir dele, não por medo, mas por desagrado.
Um dia houve uma festa na casa do
pescador, e convidados bêbados deixaram repingar sakhe no aquário.
O vicio do peixinho por saque
voltou, mais poderoso, e o pescador notou que agora o peixinho estava mais
calmo. Então, passou todos os dias a por um pouco de saque no aquário junto com
a comida dos peixes. E o pescador continuou observando aquele peixinho curioso,
o qual cada dia ficou mais e mais bêbado, e começou novamente a infernizar a
vida dos outros peixes, mais e mais. Levou outra surra, desta vez tão grande,
que precisou ser colocado em outro aquário menor para ser medicado. Mas
continuou a receber suas doses de sakhe.
Sozinho, aborrecido, ele via o outro
aquário ao lado e notou que os demais peixes estavam contentes e aliviados em
não te-lo mais como companhia, e que só
ele os observava, e eles não. Ele mesmo não notava que quanto mais sakhe ia
tomando, mais feio ia ficando, e que estava gordo e inchado. O pescador notou
isto e parou com o sakhe.
Revoltado, o peixinho começou a
pular na água, só quando o pescador estava olhando, numa atitude aparentemente
suicida, mas que na verdade era para chamar a atenção do pescador, querendo
dizer que o pescador tinha obrigação de dar sakhe a ele. Como engordava sem
parar e decaia de saúde, o pescador no entanto entendeu que ele deveria ser
recolocado junto aos outros peixes no outro aquario.E assim o fez.
O resultado no entanto foi
desastroso: convencido de que era o rei do aquário e de que todos deviam favor
a ele e ele não devia favor ou gratidão `a ninguém, seu comportamento abusivo
foi ficando cada vez pior, e as brigas no aquário eram cada vez mais
constantes. Não deixava comida para ninguém, tomava todo o sakhe que o pescador
colocava, e mordia os outros sem perdão, e sempre que apanhava, procurava curar
seu orgulho ferido no sakhe e nos peixinhos menores, para aliviar sua
humilhação e derrota que ele mesmo provocava em sua covardia.
Um dia, o pescador perdeu a
paciência com aquele peixinho, o apanhou e o levou de volta ao rio. Agora longe
do conforto e das mordomias do aquario, ele notou que o rio era para ele um
local sombrio, e que seu antigo cardume não estava mais lá. E que todos os
outros peixes pareciam assustadoramente maiores e que queriam devora –lo. Não
havia espaço ali para suas pequenas revoltas, suas manias, seus privilégios, e
seu ego grandioso, falso e covarde, notou também que ele não era o único no
mundo, que o mundo não girava em torno dele, e que, pior ainda e mais difícil
de aceitar, o seu pequeno mundinho que ele construíra para si não existia !
Agora tinha medo do perigo, e
revoltou-se, tentando inutilmente nadar contra a correnteza, justo em uma noite
de tempestade. Foi arrastado pela correnteza sem do’ e sumiu na escuridão para
sempre.
Agora, discípulo, faca de conta que
você e’ um amigo do pescador e pergunte –me por que o Pescador o tirou do
aquário.
-Porquê tirou o peixinho do aquário,
Mestre?
-Porque , como o Pescador notou que este estava prejudicando a si próprio e aos demais
peixes, e que não se adaptava e nem aceitava o mundo, e notou também que não havia quem pudesse cuidar dele, nem o
cardume do rio, nem o do aquário, nem podia se cuidar sozinho, e que o próprio
pescador não conseguira satisfazer o exigente peixinho revoltado, decidiu-se a
solta –lo em um segmento distante do rio dizendo: “Deixemos então a Correnteza
cuidar dele. A Correnteza sabe o que faz. Deixemos que ele siga na Correnteza o
destino que ele mesmo escolheu para si, e que seja este seu Destino”.
Paralucius, contemplando o aquário,
perguntou ao discípulo:
-O que você entendeu desta lição,
meu jovem aluno?
Eu, o autor, deixo ao cargo de você
leitor, agora, pensar em o que pode ser aprendido aqui...
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