Ao sentar-se na velha poltrona reclinável de
couro, que Kazuo gostava de se sentar para ler jornal, notou na mesinha ao lado, o velho e elegante
cachimbo dele, que ele tanto gostava de fumar. Desde criança ela se lembrava do
pai gordo e barbudo, com seu roupão escuro e chinelões, fumando seu cachimbo e
lendo o jornal enquanto ouvia "Aria na Corda Sol ", de Bach.
Ela achou o CD e colocou a música para tocar.
Ela se levantou da poltrona e ficou olhando para ela, sentindo que ela nunca
estivera assim tão vazia. Ela não queria, mas lágrimas irromperam de seus olhos,
eram as saudades que lhe calavam fundo e rasgavam sua alma como as garras de
uma fera insaciável, que lhe torturava a mente com todas as cenas em que fora
ríspida e arrogante para com Kazuo.A cena do cachorro no parque voltou, contra
a sua vontade,que ela tentava a todo custo espantar da cabeça, mas uma miríade
de angústias não deixava. Ela caiu ajoelhada em frente da poltrona com as
mãos no rosto e o que mais queria eram
os afagos dele em seus cabelos e seu ombro forte.
Sua tristeza explodiu sem controle e ela não
sabia o que pensar!
Depois de algum tempo resolveu sair dali,
resolveu fugir dali, não queria mais se lembrar de mais nada! Ela não se
reconhecia naquelas fotos- aquela menininha feliz e inocente não era ela, não
poderia ser, como ela poderia ter mudado tanto assim?Era inaceitável, era
sofrido demais, em que ela tinha se tornado?
Como ela poderia enfrentar tudo aquilo?
Mas não havia para onde fugir. Tudo naquela
casa lembrava seus pais e seus irmãos, e os retratos que ela solenemente
ignorou por completo uma vida inteira pareciam persegui-la e estavam por todo
lado- de repente, nem ela mesma sabia se os retratos que via eram verdadeiros ou
se era a sua mente fabricando tudo quilo para culpá-la.
Culpa ! Sim,
a tonitruante culpa que atiçava seus arrependimentos, que como adagas
cruéis trespassavam seu coração em chamas, queimando no inferno dos suplícios
das omissões de toda uma vida deixada para trás!
O que deixara de aproveitar na sua vida?
Ó insanidade pérfida que é a ignorãncia do
ostracismo auto- relegado,que a falta de experiência de vida lhe roubava !
Ela não se perdoava por não saber e mais ainda
por ter consciência de que não tinha como saber sozinha, e os grilhões da
dependência pareciam estar fixados em seus tornozelos e suas pernas se
arrastavam...
Tal como o fantasma com que se via, também
fantasmas eram aquelas imagens de seus entes queridos, que a pareciam perseguir
e insistir em lhe gritar:
-Ausente ! Ausente !
Lune tapava os ouvidos os prantos e queria
correr, mas não conseguia. Chegou na cozinha novamente e o bilhete do bolo estava
caído no chão defronte a geladeira.
Só então ergueu os olhos e viu o retrato da mãe
com ela ainda bebê na geladeira.
Ela sempre passava ali a vida inteira e nunca
tinha visto este retrato!
Ela o tirou do imã que o segurava na porta da
geladeira e se sentou no chão, no tapete com a mesinha baixa onde as refeições
eram servidas.Virou o retrato do lado oposto, não queria ver aquilo, queria
rejeitar sua infância, a família, todas as lembranças!
Mas havia um recado escrito atrás daquela velha
foto esmaecida com o tempo:
"10 de Abril de 1988:
Nasceu minha amada filha Lune ! Estou tão
feliz!Minha primeira filha!Como me esquecer, quando o Kazuo a ergueu no ar e a
tirou dos meu braços e disse:Querida Lune, seu pai está aqui para te amar, te
proteger e te educar, e nunca lhe faltará? Foi tanta emoção nunca mais
esqueci...te amo, minha filha ! Momiji Tamasuki"
Na hora voltaram-lhe as cenas de sua briga com
sua mãe, e quando se dera conta, suas lágrimas encharcavam a foto e seu dedo
acariciava a figura de sua mãe...
Repentinmente surgiu um grande vazio dentro
dela e uma enorme vontade de abraçar e acariciar a todos, a família inteira...e ela chorou, chorou intensamente !
Só então , depois de muito pranto,se lembrou que era hora de fazer o
almoço, tratou de esquentar a sopa que Momiji deixara na geladeira, já pronta,
para esquentar no micro ondas e dar ao
Otaru.
Também esquentou um pedaço de pizza que sobrou
do jantar.
Ao subir para o quarto de Otaru, com a bandeja
nas mãos, deixou-a na cama e abraçou seu irmão como nunca fizera na vida
antes.Comprimiu a cabeça dele contra seus seios e agora não sentia vergonha
alguma.Fazia carinhos na cabeça dele e então beijou sua testa.
-Oh, está parecendo a mamãe...Lune-san, como
você mudou...
-Eu vou te servir a sopa quentinha, está bem,
Otaru?Abra a boca, olha o aviãozinho...
Disse Lune, com a colher de sopa na mão
esquerda, já que ela era canhota.
-Eu não sou mais criança para isto !
=Ah, é que estamos brincando de mamãe e
filhinho, vamos ,Otaru, eu gosto tanto de você...
Disse Lune com uma voz doce e carinhosa e
lançou a ele seu olhar mais meigo.
O menino sorriu e abriu a boca e ela lhe
serviu.
-Muito bem, comeu tudo !Menino bonzinho !
E Lune o abraçou de novo.
Ela na verdade estava carente, e expressando nele
a vontade que tinha de abraçar e acarinhar os pais e a irmã.Mas então notou que
ele estava quente e suando gelado.
Mais que depressa, ela pegou o termômetro de
novo e colocou nele. Depois de alguns minutos, olhou:trinta e nove vírgula seis graus !
Alarmada e aflita, lembrou-se de que se o
remédio não funcionasse, teria de levá-lo a tomar banho.
-Otaru, vá para o banho, vamos , eu te levo até
o banheiro.
-Eu não consigo, eu estou muito fraco...
Lune não teve dúvidas: carregou o menino nos
braços e o levou ao banheiro do corredor.
-Eu vou te dar banho então ! Pode deixar comigo
!
-Não, eu tenho vergonha !Nem a mamãe faz
isto...
-Mas esta faz !
E Lune despiu o menino e o colocou na banheira,
já na temperatura certa.
Ela no entanto estava corada de vergonha. Era a
primeira vez na vida que via um menino nu.
Ela lavou as costas , os ombros, braço ,barriga
e cabelo dele, e depois perguntou:
-O resto você consegue lavar sozinho?
O garoto, tão vermelho de vergonha quanto ela,
fez um sinal de "sim" com a cabeça e Lune virou-se de costas para
ele.
Banho tomado, ela o enxugou e o levou de volta
ao quarto envolto na toalha, e lhe deu um novo pijama para vestir.Mediu a
temperatura, que agora abaixara mais de um grau.Ainda assim, ela buscou outro
remédio para ele e saiu do quarto, aliviada.
Passando em frente do quarto da Ruri, decidiu
entrar.
Ela nunca em sua vida havia entrado naquele
quarto. E viu quantas fotos de infância das duas irmãs juntas Ruri tinha!
Olhou nos armários das irmãs, cheirou suas
roupas, colocou um pouco do perfume dela no pulso, e ao abrir a gaveta da
cômoda, qual não foi sua surpresa ao ver um embrulho grande, com um bilhete em
cima, escrito:"Para Lune, com carinho !"
Ao abrir o pacote viu uma bolsa de couro marrom,simples,
mas elegante.Lembrou-se então que há muito Ruri e Momiji insistiam que ela
tinha de ter uma bolsa, que toda mulher tinha e ela tinha de ter também.
-Ruri...Ai,Ruri-nee-chan...por que você faz isto comigo, onee-chan...você me fez chorar, sua boba...que linda, adorei, adorei, obrigada, queria tanto que você estivesse aqui para te abraçar !Você me ama tanto e nunca te dei valor, mas eu também te amo, irmãzinha querida !Desculpe, desculpe, me perdoooooaaaaa....
A voz alta de Lune soou em tom carinhoso e soluçante em meio a lágrimas abundantes imersas em profundo arrependimento e culpa, e ela
abraçou a bolsa como se abraçasse a própria irmã.
Espalhou os retratos na cama e ficou olhando, e
velhas lembranças de um passado distante que julgava perdido para sempre
voltavam à sua memória...
(por continuar)
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